Como hoje, era um 5 de maio de 1988, Feira de Santana amanhecia com a notícia do assassinato a tiros do seu maior organizador e líder de massas. George Américo é o fundador da cidade que conhecemos, a geração que nasceu quando George deixou de ser o “rei das invasões” e se tornou mártir, a Feira de Santana periférica, de sofrimento, pobreza e resistência, a cidade-encruzilhada, formada por gente que veio de todo canto e foi ocupando terra e se amontoando entre barracos, taboas, guetos e bairros proletários. Nos anos 80, George organizou 21 ocupações rururbanas, locais híbridos entre a cidade excludente de urbanização conservadora e os caminhos rurais. A geração que nasceu quando George morreu é filha da geração que carrega o “bandido” que ocupava terras no coração, com a gratidão merecida ao líder das ocupações que garantiram à muita gente a conquista de um pedaço de terra e um teto, ou como dizem os versos da poesia-monodia da canção de Gilsam: “George Américo guerreiro-menino, George Américo sonho peregrino, teu peito foi feito em paredes, nas ruas da Feira esculpidas, por ti me inflamei e me inflamo, ficou tua marca na flâmula de dores, em foto e mensagem, contra esses horrores que enfrentaste como o sol se pondo”.
É uma ironia trágica que hoje, nesses 30 anos do assassinato de George, assistimos a tragédia televisionada dos sem-teto do prédio ocupado no centro de São Paulo sendo utilizada pelos governos de gerentes do capital e pelo jornalismo de rapina que opera como uma agência de propaganda anti-povo para criminalizar os movimentos de luta por moradia. O crime contra George Américo nunca foi resolvido, executado a mando do poder, como foi Marielle, em outro paralelo com a conjuntura. Criminalizado pelo jornalismo da princesa-comercial, George recebeu a alcunha de “rei das invasões” e sempre foi tratado como um bandido pela mídia local, ora acusado de vender lotes, ora de manter relações com o tráfico de drogas, a mesma fórmula de assassinar reputações repetida ainda hoje para matar lutadores do povo. Quem apertou o gatilho contra George foi a grilagem de terras, a especulação imobiliária, com os nomes dos responsáveis sempre sendo sussurrados em voz baixa pelo medo ainda sentido por quem acompanhou a saga de George e sabe da crueldade dos poderosos dessa terra.
Retratado como um homem rebelde e solidário, de família pobre e sempre envolvido em causas sociais, começou sua militância no movimento estudantil e fez parte da Casa do Estudante ainda em seus tempos áureos, depois foi funcionário da prefeitura, o que facilitou seu acesso as informações sobre terrenos na cidade e foi exatamente por esse motivo demitido, fundou a Associação dos Sem Teto de Feira de Santana que mantinha uma dinâmica permanente de organização e mobilização de massas e já naquela época questionava o direito à cidade, em uma das remoções feita pela prefeitura George protestava contra a lógica de alocar os ocupantes em locais distantes da cidade como solução, normalmente no “favelão do Aviário”, como se referia na época.
Existem poucos e escassos registros das ocupações realizadas pela Associação dos Sem Teto, como a do bairro Santo Antônio dos Prazeres. Perseguido pelo judiciário, George foi preso e levado para Salvador, sendo logo solto. Mas foi em novembro de 1987, no local que hoje é o Conjunto Habitacional que carrega seu nome, o maior feito e o auge da trajetória política e militante de George Américo, cerca de 5 mil pessoas lideradas por ele, um exército de miseráveis e excluídos do “milagre brasileiro”, ocuparam o Campo de Aviação e antes do raiar do sol de um sábado tinham tomado uma grande faixa de terra de quase 800.000m², sendo até hoje a maior ocupação já feita em Feira de Santana, e talvez na Bahia. Era um tempo de ascenso das lutas populares e de trabalhadores, os ânimos iam se acirrando e a cidade vivia uma tensão cada vez maior entre os grupos políticos que disputavam o poder. O povo de Feira prontamente apoiava a luta dos sem-teto, e mesmo a polícia convocada para despejar a ocupação após uma ordem judicial se negou a reprimir os sem-teto.
Em dezembro do mesmo ano, George sofreu um atentado e declarou em uma rádio que “mesmo morto a luta dos miseráveis não iria parar”. O guerreiro-menino já tinha se tornado um mito e herói do povo pobre feirense, circulava entre as organizações políticas de esquerda e democráticas, mas mantinha uma conduta politicamente independente.
Em 5 de maio de 1988, em um crime encomendado e nunca punido, dois tiros de escopeta no peito tiraram a vida de George, seu corpo foi encontrado no rio Jacuípe, em seu enterro uma multidão tomou o centro da cidade e carregou o corpo do “Santo George”, como algumas pessoas ainda se referem ao líder sem-teto, até o cemitério e seu túmulo é ainda hoje um local de demonstração de gratidão por parte dessa gente pobre que George organizou para lutar por vida e moradia digna. Sua memória, mesmo vilipendiada por alguns, ainda segue viva e deve ser permanentemente disputada e honrada como um mártir, herói e lutador do povo da mesma terra de Lucas da Feira, Maria Quitéria e Luís Antônio Santa Bárbara, da Feira de Santana rebelde.
GEORGE AMÉRICO VIVE E LUTA! MEMÓRIA E JUSTIÇA!
Feira de Santana, 5 de maio de 2018.
Documentário “George Américo, o Rei das Invasões” (Dir. Cristiane Melo, 25min.), narrando a trajetória do militante da antiga Casa do Estudante, que se tornou presidente da Associação dos Sem Teto de Feira de Santana e liderou mais de 20 ocupações por moradia na cidade nos anos 80, sendo a maior delas a do Campo de Aviação (atualmente Conjunto George Américo), apelidado pela imprensa de “Rei da Invasões” e criminalizado pelas elites locais ligadas a especulação imobiliária, George foi assassinado em condições nunca esclarecidas em 5 de maio de 1988, enterrado por uma multidão de trabalhadores pobres, agradecida ao lutador do povo e líder sem-teto que dedicou sua vida à luta por moradia.