English Portuguese Spanish

O papel das linhas auxiliares na manutenção da supremacia branca

Apontamentos estratégicos sobre a luta contra Genocídio do Povo Negro (II) 

linha auxiliar3

Nós não amamos nossos opressores, não queremos agradá-los e esmolar seus cargos e editais. Estamos criando na prática autogestionária, autonomista, pan-africanista, uma ferramenta de autodefesa que tem criado incômodo nos comandos das policiais, nas tropas, nos governos genocidas de esquerda e direita e nos ativistas que veem seu projeto governista afundar. Que afundem sozinhos, que mergulhem com sua mágoa entre vocês. Abandonem-nos.

Hamilton Borges Walê [1]

Já estamos em 2016 e dizem por aí que Oxalá vai reger o ano.  É verão e estamos nas ruas sangrentas da Bahia de Rui Costa (PT), onde, segundo dados subnotificados da Central de Telecomunicações das Polícias Civil e Militar da Bahia (Centel) [2], trinta pessoas foram assassinadas na cidade de Salvador no segundo fim de semana do ano. Interior adentro o rastro de sangue continua; três pessoas assassinadas no primeiro dia do ano em Cruz das Almas. Sete pessoas assassinadas em seis dias na cidade de Feira de Santana. Estamos na Bahia, terra desgraçada onde a cada cinco pessoas assassinadas pela polícia, cinco são negras.

Os dados são apenas números, tabulações e curvas de nível, não dão conta de dimensionar o terror racial nas ruas, muito menos o assombro que causam os miolos espalhados no asfalto, a dor dos ossos quebrados em torturas e da carne lacerada por disparos de arma de fogo. Os dados não mensuram a neurose. Você fica em uma neurose tá ligado cêro. Aquela sensação, quase uma certeza, que será o próximo corpo abatido.  Aí você sai de casa e tem a convicção que pode não voltar. A neurose do motor à diesel e giroflex. Trombou de frente com a tático na madruga já sabe; entrou na mala, amanheceu na vala, no Cia ou na Estrada das Águas, todo picotado e embalado para viajem pro fundo da represa.

Há também uma atmosfera de medo. O medo da morte prematura; de deitar na cova rasa, seja por bala ou pela maca. O medo de ser impedido de criar seu rebento; ou de nunca ter. O medo de não brincar com seus netos. O medo de nunca mais ver a pessoa que ama, de nunca mais sentir o cheiro dela ou de não sentir o peso de suas coxas sobre seu corpo.  O medo de burlar a ordem natural das coisas e ser enterrado por sua mãe. O medo de adormecer; dos repetidos pesadelos, torturado na mata; chute no saco, costela quebrada e tiro na cara. Você começa a ver os rostos deformados dos pivetes bagaçados; ouvir as súplicas das tias por justiça e o clamor por vingança dos país. O medo de não cumprir a simples tarefas de contabilizar e nominar os corpos. A neurose do arrebento.

Estamos na Bahia, onde está lotado o Quartel dos Aflitos, o mais antigo quartel da Polícia Militar do Brasil. Aqui a polícia que mais mata no mundo ainda ganha gratificação financeira. Jovens negros são assassinados todos os dias prematuramente por disparos de arma de fogo.  Há um aumento exponencial de mulheres negras que tem se matado por não suportarem a dor de terem que enterrar seus filhos em sua idade mais produtiva.  Homens negros, despedaçados psicologicamente por não conseguiram salvar seus rebentos da besta, tem consumido endemicamente drogas pesadas; crack, cachaça e cocaína.  As famílias negras estão sendo fraturadas e aniquiladas. A cena é triste e por mais que os hippies planejem “rebeliões” pelas redes sociais e se sintam “chocados” com os pivetes bagaçados com 68 ou 111 tiros, não há espaço para afetação ideológica.

Diante desse quadro de holocausto nós da Campanha Reaja ou Será Morta/o há mais de 10 anos estamos enfrentando o terror racial nas ruas e colocando por terra a etiqueta racial da submissão. Nos inserimos como combatentes nesse cenário de guerra. Para quem não sabe, e triste do negro/a que não saiba, na Bahia há uma guerra racial de alta intensidade contra a comunidade negra. Essa guerra de alta intensidade tem sido a principal estratégia utilizada pela supremacia branca, de esquerda e direita, para perpetuação, ramificação e interiorização dos multifacetados dispositivos estatais e paraestatais que compõem o continuum Genocídio do Povo Negro. É uma guerra em todos os termos; nos disparos, nos calibres, nas perfurações e na idade prematura dos assassinatos. Uma guerra que possui múltiplas dimensões; físicas, psicológicas, químicas e afetivas.

Essa guerra racial contra negros/as tem se intensificado nos últimos 13 anos diante da intrincada teia de dispositivos militares do governo supremacista branco do PT. Dispositivos diretos e indiretos, diretos como a crescente legitimação institucional de chacinas e massacres como modus operandi na ação policial [3]. Ou dispositivos indiretos; cooptação racial, neutralização e vigilância de organizações radicais negras. Nesses termos na análise que segue trataremos especificamente de um desses dispositivos: as linhas auxiliares da supremacia branca.

O tema das linhas auxiliares foi um debate tático em variados contextos insurrecionais radicais negros, seja de libertação nacional ou na luta por direitos fundamentais. Usualmente o debate se encaixa no contexto da teoria política pan-africanista das elites negras [4], tendo em obras como, Declaramos Guerra ao Inimigo Interno e África deve unir-se, como algumas de nossas referências clássicas para análise em tela. De maneira geral as elites negras; financeiras, intelectuais e burocráticas, mantém o seu status quo racial, às custas de serem mantenedores de uma etiqueta racial da subjugação, que busca a incorporação com as estruturas de poder branco e não sua demolição por completa. Como alerta o antigo líder da organização nacionalista negra Nação do Islã:

“A chamada elite negra, subsiste das migalhas da filantropia branca e do que pode ser espremido ou extorquido do magro rendimento dos operários negros.” (Elijah MuhammadO Poder Negro)

Diante dessa conjuntura, para os fins organizacionais da presente análise, entendemos por linhas auxiliares ou forças auxiliares, o conjunto de instâncias estatais, paraestatais e da iniciativa privada, que compõem a intrincada rede política de alianças da supremacia branca no contexto específico de uma guerra racial de alta intensidade. As linhas auxiliares sustentam o projeto civilizacional da supremacia branca em momentos de crise. Além de controlar ideologicamente a opinião pública; seja legitimando o projeto genocida em curso; ou subdimensionando o impacto da guerra racial na comunidade negra.

No contexto específico da guerra racial de alta intensidade na Bahia, as linhas auxiliares são essencialmente, a extensa rede de alianças da supremacia branca, composta por partidos políticos, o lobby das ONGs de direitos humanos, o falido projeto político da promoção da igualdade racial, o lobby dos grupos de pesquisas nas universidades públicas e privadas, o lobby do empreendedorismo étnico; que tem jogado nome do honorável Garvey na lama e por fim, o mais recente lobby do “genocídio da juventude negra” ou “extermínio da população pobre e negra”.

No entanto, cabe acentuar que na Bahia do sionista Jacques Wagner e do nazista Rui Costa, o projeto político de promoção da igualdade racial tem se consolidado nos últimos 13 anos como a principal linha auxiliar de sustentação ideológica da supremacia branca de esquerda, democrático-popular. Linha auxiliar essa, que se ramifica por instâncias estatais e paraestatais, mas que tem em dispositivos de rendição racial sua principal incubadora doutrinaria.

É preciso termos plena dimensão do papel tático que as secretarias de promoção da igualdade racial tem exercido no conjunto de políticas ramificadas que estruturam e perpetuam a manutenção do Genocídio do Povo Negro. Essas ditas secretarias dos “negros”, que são na verdade aparelhos estatais de rendição racial tem dado legitimidade ideológica e sustentado politicamente governos supremacistas brancos nos últimos vinte anos.  Até então agiam de maneira subterrânea nas frestas subalternas do aparelho estatal. Entretanto, no último ano, diante do contexto da luta comunitária das mães, pais, familiares e amigos das vítimas da Chacina do Cabula, o papel das linhas auxiliares tornou-se público e notório na sociedade civil. Cabe um breve histórico.

No mês de março (2015) a Campanha Reaja ou Será Morta/o foi recebida em audiência da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, na OEA, para tratar de extermínio de jovens negros no Brasil [5]. Fizemos e defendemos uma petição que condenava o Estado Brasileiro por crime de lesa-humanidade: Genocídio.  O governo supremacista branco brasileiro, representado pelo Secretário de Ações Afirmativas da SEPPIR; um homem negro, fez uma longa e exaustiva fala, admitindo a falência do governo em reduzir os índices de desigualdades e letalidade que atinge de sobremaneira o Povo Negro.  Contudo, apesar de apresentar relatórios, protocolos e programas fantasmas o governo saiu derrotado na reunião; não sem antes teatralizar, com a afetação do senhor Breno Costa, representante interino do Brasil junto à OEA, que quebrou o protocolo para mostrar quem é o branco na mesa.

Ainda no mesmo mês, também no contexto da luta comunitária por justiça e reparação de mães, pais e familiares das vítimas da Chacina do Cabula, aconteceu uma reunião amplamente divulgada pela mídia, entre a Secretaria de Promoção da Igualdade Racial do estado da Bahia (Sepromi) e o baixo-oficialato da Polícia Militar, especialmente, com representantes das tropas especializadas, como Rondesp, Caatinga, Peto, entre outras [6].

Essa reunião teve um triplo objetivo tático: 1) formalizar uma parceria interinstitucional entre uma secretaria de promoção da igualdade e a SSP-BA; 2) selar uma aliança operacional entre uma elite negra burocrata e uma elite negra militar; 3) a reunião cumpriu o papel de tentar salvar a imagem pública do governo de Rui Costa, que havia sido abalada politicamente no cenário internacional, diante da nossa fala na audiência da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, na OEA. Não foi à toa que a reunião foi amplamente divulgada pela mídia.

A linha auxiliar tentou desautorizar publicamente as graves denuncias que realizamos na Corte Interamericana, além de municiar ideologicamente a corporação policial. Desse modo essas instituições de “promoção da igualdade” tem se qualificado como estruturas formais de rendição e subjugação racial, onde, uma elite negra intelectualmente domesticada em centro de pesquisas e racialmente submetida aos desmandos de uma esquerda branca historicamente racista, tem negociado e colaborado ideologicamente com o Genocídio do Povo Negro no Brasil.

Em agosto mais uma vez as linhas auxiliares foram acionadas pela supremacia branca para neutralizar a luta racial comunitária insurrecional. Dias depois do I Encontro de Formação e Organização Pan-africanista: Contra o Genocídio do Povo Negro e da III Marcha Internacional Contra o Genocídio do Povo Negro, fomos publicamente agredidos em meios de comunicações virtuais, por um texto elaborado por um dos pensadores ideológicos do projeto falido da Igualdade Racial. Como comenta o Dr. Hamilton Borges Walê:

“Foi veiculado recentemente pelas páginas do Geledés, um texto de um ‘ativista’ negro, ex- assessor especial da Seppir que passou todo o governo Lula criticando Matilde Ribeiro e Edson Santos, cujo conteúdo pretende nos difamar, nos desqualificar – nos atacar tal qual um soldado da Rondesp faz conosco todos os dias aqui na Bahia. Age como inimigo, fazendo alegações sem consistência e olhem que ele é o melhor que essa gente perfumada que adora os “puxadinhos” do governo tem. No texto, o ex-assessor não fala uma palavra sobre a polícia que mata negros, sobre o governo que colocou o exército para matar e controlar gente preta na Maré (RJ). Ele pegou um avião, foi para a Bahia buscar palanque em nossa organização construída sem os brilhos dos banquetes governamentais e dessas ONGs negras submetidas ao modelo imposto para facilitar a barganha com seus fundos, agências e governos, organizada do nordeste para o mundo, longe dos holofotes do centro político do país.”  (Hamilton Borges WalêMarcha contra o Genocídio do Povo Negro incomoda os inimigos)

Bem como podemos observar, as linhas auxiliares tem um papel preponderante na manutenção da supremacia branca, sobretudo, na perspectiva de manter uma cultura política racial de subjugação e incorporação ao projeto político em curso. Estamos na Bahia, em meio a uma guerra racial de alta intensidade. Somos uma ameaça para supremacia branca e suas linhas auxiliares. Estamos inseridos no submundo da política racial, distantes do controle ideológico da new democracia racial.

Por fim, dirijo-me agora à militância de nossa organização. Nas capitais, cidades do interior, ocupações, assentamentos, quilombos, celas de cadeia, salas de aula, ao povo do hip-hop, aos pivete, as novinhas, aos tios e as tias.  À todo “exército de ratos” que nos acompanham e protagonizam a luta comunitária. Permaneceremos no submundo, acumulando nosso conjunto de métodos comunitários de enfrentamento ao Genocídio do Povo Negro. Apenas assim conseguiremos erigir nossa Plataforma Pan-africanista de Enfrentamento ao Genocídio do Povo Negro, baseada na centralidade dos programas de serviço comunitários, na auto-organização, na ação direta combativa nas ruas e na autodefesa como princípio estruturante de nossa organização. Não há tempo para distinção intelectual ou afetação ideológica; é tempo de centralidade no trabalho comunitário.  E como disse o coroa cêro: “sem volta, sem voto, sem vacilação.

 Por Aganju Shakur, articulador da Campanha Reaja ou Será Morta/o. 

Janeiro de 2016

NOTAS

 [1] A Marcha contra o Genocídio do Povo Negro incomoda os inimigos, por Hamilton Borges Walê. Texto na integra em http://bit.ly/1n6Heaq

[2] Salvador e RMS registram quase 30 assassinatos no fim de semana, ver em http://bit.ly/1Zq3eZA

[3] Chacinas, massacres e terrorismo racial na Bahia, por Aganju Shakur. Texto na integra em http://bit.ly/235b3IN

[4] Quem tiver mais interesse em compreender o papel de linha auxiliar das elites negras, ver:  Declaramos Guerra ao Inimigo Interno (Samora Machel); O Poder Negro (E.U. Essien-Udon); Uma Questão de Raça (Cornel West); A África deve unir-se (Kwame Nkrumah) e Mensagem ao Movimento Negro (Assata Shakur).

[5] OEA cobra ações para enfrentar genocídio de negros no Brasil, por Lena Azevedo, ver em http://bit.ly/1Q3z8IF

[6] Sepromi e PM formam grupo de trabalho para realizar ações ligadas às questões raciais, Ver em http://bit.ly/1Ki0KW3

[7] Não precisava cuspir no prato, ver em http://bit.ly/1JPgaGn

COMPARTILHE

LEIA AS ÚLTIMAS POSTAGENS EM NOSSO BLOG

Presidente Fred, o messias pantera

No início do ano letivo no campus leste da Escola Secundária Proviso, um colégio com maioria de estudantes negros em Maywood, nas proximidades de Chicago, em