No marco dos 50 anos do justiçamento do empresário fascista Henning Albert Boilesen, entrevistamos o camarada Ivan Akselrud de Seixas, jornalista, ex-preso político e guerrilheiro urbano do Movimento Revolucionário Tiradentes, o MRT. Em 15 de abril de 1971, o Comando Devanir José de Carvalho, composto pela ALN, a Ação Libertadora Nacional, e o MRT, justiçou Albert Boilesen na alameda Casa Branca, em São Paulo.
Devanir José de Carvalho, o Comandante Henrique, fundador do MRT e homenageado na ação havia sido assassinado pela ditadura no dia 7 de abril de 1971. A ALN, o MRT e outras organizações como a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR) e o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) se articulavam na Frente Armada e resistiam a uma brutal repressão no início dos anos 1970. A ação que justiçou Albert Boilesen foi comandada por Carlos Eugênio da Paz, o Clemente, então comandante militar da ALN.
Boilesen, dinamarquês naturalizado brasileiro, era presidente do grupo Ultragaz e um dos organizadores do apoio empresarial ao regime dos generais. Articulava as doações de empresários à Operação Bandeirantes, a famigerada OBAN, acompanhando e participando pessoalmente de sessões de tortura.
Na entrevista, o camarada Ivan Seixas nos fala também sobre sua atuação no MRT, a esquerda armada, o papel do PCB, o imperialismo e a relação da burguesia brasileira com a ditadura.
CDR: Saudações camarada Ivan, primeiro gostaríamos que se apresentasse aos nossos leitores e falasse um pouco sobre sua trajetória e o Movimento Revolucionário Tiradentes.
Ivan Seixas: Sou filho de um casal de comunistas, que se conheceram dentro da sede do Partido Comunista, no Rio de Janeiro. Meu pai era um operário mecânico, paraense, filho de pernambucano com cearense, e minha mãe era uma professora de ensino primário, gaúcha, filha de imigrantes russos, fugitivos dos massacres czaristas. Eu nasci em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, num bairro miserável, quase uma favela, e desde cedo vi meus pais e muitas outras pessoas lutando por condições mínimas de sobrevivência, tais como água, luz, esgoto, transportes, escolas e posto de saúde, entre outras.
Meus pais foram expulsos do PCB, em 1953, por criticarem a linha política de uma direção que não tinha como objetivo a tomada do poder. Continuaram a lutar contra a ditadura da burguesia nos movimentos populares e sindicais.
As lutas contra a ditadura econômica da burguesia foram agravadas quando houve o golpe militar, em 1964. Todas as pessoas que lutavam por conquistas mínimas de sobrevivência para a classe trabalhadora, passaram a lutar contra a ditadura política implantada pelos militares a serviço da burguesia. À época do golpe de Estado meu pai trabalhava na Petrobras e atuava no sindicato da categoria. Por essa causa perdeu o emprego e passou a constar nas listas sujas, que tinham os nomes dos inimigos da ditadura, que não poderiam ter empregos em nenhuma empresa, pública ou privada. O objetivo era fazer os que lutam passar fome com suas famílias.
Meu pai, e por extensão toda a família, passou a fazer parte de organizações clandestinas de luta contra a ditadura. No Rio Grande do Sul, para onde voltamos após o golpe, na tentativa de fugir das listas sujas, meu pai se integrou a um movimento clandestino, que reunia ex-militares brizolistas e comunistas decepcionados com a inação do PCB e sua direção. Era o MR-26 – Movimento Revolucionário 26 de Março, que tinha esse nome por ser remanescente da primeira experiência de luta armada do Brasil pós-golpe, que é conhecida como “Guerrilha de Três Passos”, comandada pelo ex-coronel Jefferson Cardim e que foi deflagrada nesse dia.
Em 1970, meu pai foi contatado por um companheiro de Petrobras e do sindicato dos petroleiros, que há tempos tentava esse contato. Trazia um convite dos companheiros do MRT – Movimento Revolucionário Tiradentes, que aglutinava forças na sua luta armada, em São Paulo. O convite foi aceito e nossa família se transferiu para a capital paulista para integrar a luta contra a ditadura.
O MRT era uma organização revolucionária composta apenas por operários e trabalhadores de vários segmentos. O comandante da organização, Devanir José de Carvalho, era um torneiro mecânico e fundador do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC paulista, tinha sua base de atuação nessa categoria e nessa região. O segundo comandante era o operário da indústria gráfica Dimas Antônio Casemiro, nascido e atuante na região de Votuporanga, com família de camponeses. O terceiro comandante passou a ser meu pai. Todos comunistas de longa militância e marcados pela divergência com a direção reformista do PCB, desde antes do golpe.
O nome do Movimento Revolucionário Tiradentes é uma homenagem ao MRT, braço armado das Ligas Camponesas, criado por Francisco Julião, em 1961. Vários militantes comunistas atuavam nessa organização das Ligas Camponesas como tarefa de seus partidos, notadamente o PCdoB – Partido Comunista do Brasil, que depois romperam com esse partido por ocasião do golpe e foram militar nas organizações de luta armada urbana. Entre esses havia vários que depois foram fundar o MRT em que eu atuei. Era a sinalização de que era uma organização de luta para a tomada do poder.
Desde sua origem, o MRT atuou na ação armada e na busca de unidade das várias organizações de luta armada. A sua primeira grande ação foi a captura do cônsul japonês, em São Paulo, feita junto com a VPR – Vanguarda Popular Revolucionária, liderada pelo capitão Carlos Lamarca.
A marca da organização sempre foi a dedicação radical e ostensiva na ação contra o inimigo, e a busca da unidade das esquerdas empenhadas na luta armada, numa grande Frente Armada. A linha política central do MRT era marxista-leninista e se definia como um “movimento”, que buscava a reorganização do Partido Comunista, que julgava extinto no Brasil. Por ser leninista, entendia que a luta armada é a forma eficaz e efetiva para a tomada do poder. Por não aceitar a ação armada desgarrada do trabalho político junto às massas trabalhadoras, o grupo dedicado às ações armadas era composto por, no máximo, dez pessoas. Nunca passamos de oito, mas a ação do MRT causava um impacto muito grande na ditadura, que tinha como objetivo a destruição da organização e a eliminação física de seus combatentes.
O mês de abril de 1971 marca o aniquilamento do GAC – Grupo de Ação na Cidade, grupo de militantes dedicados à ação armada, mas a preservação das frentes de trabalhos de massa, no ABC e no interior do estado de São Paulo, visto que os responsáveis morreram na tortura e não colaboraram com o inimigo. Eu era responsável por alguns contatos com o coordenador de uma das regiões do trabalho político do campo e também não forneci essa informação ao inimigo. Dia 5 de abril foi capturado e assassinado no dia 7 de abril, nosso Comandante Henrique, que foi torturado por quase três dias seguidos por vários torturadores, inclusive o cônsul dos EUA em São Paulo, e Henrique nada colaborou. No dia 16 de abril caímos eu e meu pai, que foi torturado no dia seguinte, após ser barbarizado na tortura, sem revelar nada ao inimigo. Uma das informações que queriam de nós era sobre o justiçamento do Henning Boilesen, acontecido no dia anterior à nossa captura. Ele também nada forneceu ao inimigo e nós dois estancamos o processo de quedas.
Como nada fornecemos de informação que levasse a mais capturas, a ditadura usou a ação de um infiltrado para executar o terceiro comandante da organização, Dimas Antônio Casemiro, o Comandante Rei, que foi fuzilado ao chegar ao seu aparelho. A ditadura precisava dar uma resposta violenta e rápida ao justiçamento do instrutor de torturas e arrecadador de finanças do caixa de premiação aos torturadores. Depois dessas quedas, nenhum militante foi capturado.
CDR: Como avalia o processo que culminou no golpe de Estado de 1964, o papel do imperialismo e a omissão da direção do PCB em organizar a resistência?
Ivan Seixas: O golpe de Estado foi uma agressão imperialista contra nosso povo e nosso país, que contou com a ação direta da parcela americanófila das Forças Armadas nacionais e com a colaboração de setores entreguistas da burguesia nacional. Como parte da chamada “guerra fria”, o assalto ao poder foi um projeto definido pelo General Golbery do Couto e Silva, agente formado pelo exército dos EUA, em seus escritos na Escola Superior de Guerra, criada por ele e por oficiais do exército dos EUA, como escola de formação de golpistas a serviço do projeto imperialista no Brasil. Esse é o resumo cruel do golpe contra a classe trabalhadora brasileira, em que o imperialismo dos EUA investiu muitos dólares, armas e agentes.
As forças golpistas eram as tradicionais da burguesia brasileira, que entende que seus interesses estão ligadas ao capital internacional e nunca aos anseios do povo trabalhador brasileiro. Ao redor dessa articulação golpista se ligaram todos os tipos de mercenários e oportunistas, que se apresentaram para a quebra das regras do Estado burguês no momento em que a classe dominante rompeu com sua própria legalidade.
O projeto nacional desenvolvimentista levado a cabo pelo governo reformista do trabalhismo getulista, apoiado pelo Partido Comunista, não colocava em risco o capitalismo e o Estado burguês, mas contrariava alguns interesses do imperialismo dos EUA por colocar a questão da soberania nacional e por ter uma política externa autônoma. As famosas Reformas de Base confrontavam em vários aspectos os interesses da classe dominante brasileira e os interesses do imperialismo.
Por outro lado, as políticas reformistas do governo de João Goulart atrapalhavam também a exploração capitalista sem freios, como historicamente acontecia. A democracia razoavelmente levada à sério pelo governo reformista garantia a organização e a atuação da classe trabalhadora, organizada em seus sindicatos, permitindo uma atuação sem a ostensiva repressão aos movimentos. Na área rural, a crescente atividade da organização popular também colocava em xeque a propriedade da terra, gerando o temor de perda de poder por parte do latifúndio, que é notadamente de formação escravagista.
O campo progressista, formado pelos trabalhistas, nacionalistas e a esquerda reformista, ingenuamente, tocava o governo com a preocupação de dar a maior eficiência gerencial possível na tarefa de dar condições de vida mais dignas para a população, dando como certo que a direita iria respeitar democraticamente as medidas tomadas em benefício da classe trabalhadora. Essa ingenuidade e a preocupação com a eficiência administrativa governamental deixaram de lado a fundamental tarefa de conscientizar e organizar a população para o enfrentamento da reação que a burguesia certamente iria fazer contra as conquistas da classe trabalhadora.
Aí nos deparamos com o velho problema da falta de uma visão marxista-leninista da realidade. Pela visão reformista, não há luta de classes, não há noção de que a burguesia é inimiga da classe trabalhadora, não há ação imperialista, não há a preocupação com o enfrentamento de um inimigo, que não descuida de seus interesses e não há a preparação para a próxima agressão desse inimigo. Menos ainda de que o Estado é da burguesia para manter e reproduzir o modo de produção capitalista e tudo fará para impedir qualquer perigo de perda de controle para massa trabalhadora organizada. Em outras palavras, tinha a ingênua confiança num absurdo conceito de civilidade por parte de quem age conforme seus interesses de classe.
De parte da esquerda organizada, hegemonizada à essa época pelo PCB, essa crença na democracia burguesa levou à inatividade na preparação de uma resistência mínima contra o golpe. Declarações de Luís Carlos Prestes, secretário geral do PCB, às vésperas da deflagração do assalto ao poder por parte da direita, diziam que qualquer tentativa golpista seria duramente reprimida pelos setores legalistas das Forças Armadas. E, muito pior do que isso, dizia que “o processo revolucionário está nas mãos do presidente da República”, numa incrível inversão de valores para quem se propunha a ser um dirigente revolucionário.
Verdade seja dita, a preocupação e preparação para uma resistência mínima ao golpe foi feita pelos setores nacionalistas do trabalhismo, que tinha alguma inserção nas Forças Armadas ainda. Por fora, organizaram a resistência como puderam. Não por acaso, Leonel Brizola organizou os “Grupos de Onze”, que tinha como tarefa reunir até onze pessoas, conseguir armas para elas e fazer a luta contra o golpe. Francisco Julião, líder das Ligas Camponesas, no Nordeste, mantinha uma razoável estrutura com o Movimento Revolucionário Tiradentes – MRT, que também tinha uma preocupação organizativa e de luta armada contra o golpe. A esquerda nada fez.
O resultado não poderia ser outro. O golpe aconteceu e não houve resistência. As primeiras manifestações de oposição à ditadura já consolidada foi feita pelos setores nacionalistas e brizolistas. A primeira guerrilha foi a tentativa de formação de uma coluna guerrilheira comandada pelo Coronel Jeferson Cardim, que tomou cinco cidades do norte do Rio Grande do Sul e marchou rumo ao norte e foi destruída no oeste do Paraná. Os remanescentes voltaram ao Rio Grande do Sul e se reorganizaram num dos primeiros movimentos de luta armada urbana, o MR 26 de Março, que levou esse nome em homenagem à data de deflagração desse primeiro movimento de luta armada contra a ditadura. A esquerda marxista estava envolvida num duro processo de luta interna e de dissidências, que levou ao surgimento de várias organizações de luta armada dois anos depois.
CDR: Pode nos falar sobre o surgimento das organizações armadas. Como entende a relação entre luta de massas e luta armada?
Ivan Seixas: A questão da luta armada não é, nunca foi e nem pode ser fruto de geração espontânea. Deve ser sempre expressão da luta de classes, quando o rompimento e a adoção da violência revolucionária será a única saída e quando for uma necessidade para a tomada do poder. Isso se deve ao fato de que a burguesia usará todo o peso do Estado burguês para reprimir as reivindicações da classe trabalhadora por medidas transformadoras. Nada que ponha em perigo a dominação capitalista será tolerada. A própria experiência reformista é motivo de repressão e rompimento violento. Basta olhar para todas as experiências reformistas ao redor do mundo e se constatará que todas, sem exceção, foram destruídas e em seu lugar foram colocados governos autoritários e repressivos, que destruíram as conquistas, sem deixar nem lembrança.
A luta armada no Brasil surgiu como reflexo do descontentamento e decepção com a direção reformista do PCB, partido hegemônico da esquerda àquela época. E as organizações revolucionárias surgiram dentro de um processo de extrema violência por parte da burguesia e sua ditadura militar. Isso explica, em grande parte, o surgimento de tantas organizações de combate à ditadura, pois o processo foi descentralizado e atomizado em cada cidade grande ou capital de estado. Mesmo as com origem em setores nacionalistas se mantiveram sob a perspectiva de reagrupamento num prazo futuro indeterminado.
Com certeza, nossas organizações eram expressão das lutas das massas, mas a maioria estava desligadas das lutas do dia a dia, devido à intensa repressão da ditadura militar. Mesmo assim, as grandes greves operárias de Osasco (SP) e Contagem (MG) foram dirigidas por militantes das organizações revolucionárias e não pelos reformistas, que estavam abrigados no partido de oposição consentida.
Não há como dissociar a luta armada da luta de massas, em sindicatos e nas ruas. É uma falsidade afirmar que a Revolução Cubana teria sido feita sem a participação das massas trabalhadoras. A estratégia militar do chamado foquismo não abre mão da participação das amplas massas. Os reformistas, que nada fazem para a tomada do poder, usam a falsa ideia de que a Revolução Cubana aconteceu sem as massas. Ernesto Che Guevara afirma em seu livro “Guerra de Guerrilhas”, que não é um manual de guerrilhas, mas sim um livro de análise das possibilidades revolucionárias:
“Consideramos que três contribuições fundamentais feitas pela Revolução Cubana à mecânica dos movimentos revolucionários na América são: (1) As forças populares podem vencer uma guerra contra o exército. (2) Nem sempre é necessário esperar que todas as condições para a revolução sejam satisfeitas; o foco insurrecional pode criá-los. (3) Na América subdesenvolvida, o terreno da luta armada deve ser principalmente o campo.
Destas três contribuições, as duas primeiras lutam contra a atitude quietista dos revolucionários ou pseudorrevolucionários que se refugiam na sua inatividade, sob o pretexto de que nada pode ser feito contra o exército profissional, e alguns outros que se sentam e esperam por, de forma mecânica, todas as condições objetivas e subjetivas necessárias serem atendidas, sem a preocupação de acelerá-las. É claro que, como acontece para o mundo inteiro hoje, essas duas verdades inquestionáveis foram discutidas anteriormente em Cuba e provavelmente serão discutidas também na América.”
Em outras palavras, o Che mostra a divergência e crítica ao comportamento do que ele chama de “quietista dos revolucionários ou pseudorrevolucionários que se refugiam na sua inatividade, sob o pretexto de que nada pode ser feito” sobre a Revolução e a construção do processo revolucionário. É bem clara a decisão de não obedecer aos ditames das burocracias partidárias tradicionais. Nada fala da luta revolucionária armada ser contra a luta de massas. Pelo contrário, o MR 26 de Julho, organização liderada por Fidel Castro tinha uma poderosa rede de apoio e de entidades de massas, que participaram ativamente da luta e tomada do poder.
CDR: Qual foi relação entre a burguesia brasileira e a ditadura militar? Como empresários, como Albert Boilesen, participaram do regime e com se beneficiavam da repressão?
Ivan Seixas: Nenhuma ditadura é implantada sem um projeto político, econômico e social para tomar o lugar da ordem a ser derrubada. Não há ditadura de “homens maus”. Esses são, na realidade, executores do assalto ao poder e executores de um projeto autoritário a ser imposto pela violência e isso, em geral, é conduzido ou apoiado pela força militar do próprio Estado burguês. Em outras palavras, toda ditadura está a serviço da classe dominante para impor o novo projeto econômico, político e social sobre a classe trabalhadora. Em 1964, a burguesia deu o golpe afirmando que se sentia ameaçada pela suposta implantação de uma “República Anarcossindicalista”, que trocando em miúdos, seria um “Estado comunista baseado na classe trabalhadora consciente e organizada em sindicatos”. Ou seja, foi um golpe antipopular e anticomunista.
Não concordo com a denominação de que era uma ditadura civil-militar ou civil-empresarial-militar, pois a ditadura era militar, mas não era militarizada. Na realidade, havia uma parte do governo da ditadura que era tocado pelos militares, que garantiam a repressão aos movimentos operário e camponês, que garantia a execução da política econômica elaborada e realizada pelos economistas liberais, a mando da burguesia. Isso quer dizer que acaba sendo redundante afirmar que era uma ditadura empresarial-militar, pois toda a política era para beneficiar a burguesia nacional e ao projeto de inserção capitalista do Brasil na economia mundial desenvolvido pelo imperialismo dos EUA, que passava a ter um aliado de peso e controlado por eles na disputa internacional. Gostaria que fosse apontado alguma medida que não tenha sido tomada em benefício da burguesia nacional e do imperialismo dos EUA. Não houve.
Importante lembrar que as Forças Armadas deram um golpe, assaltaram o poder e os cofres públicos, e portanto não precisavam juntar dinheiro para colocar a máquina repressiva do Estado burguês para funcionar. Os impostos eram pagos pela classe trabalhadora e todas as pessoas consumidoras e havia dinheiro para a repressão militar, classificada como “segurança”. É bobagem pensar que a arrecadação de dinheiro de empresários seria necessária para fazer o Estado repressivo funcionar. Era, na realidade, uma “premiação à produtividade repressiva”. Para cada um de nós que era capturado havia um valor em dólares por nossas cabeças, mesmo os que sobreviveram também rendiam esse prêmio. Era o Estado tocado por mercenários e os mercenários precisam ser remunerados não por salários de funcionários públicos, mas por prêmios não oficiais.
Um desses mercenários era Henning Albert Boilesen, que tinha como fachada legal o título de presidente de um grupo empresarial. Era um arrecadador de dinheiro de empresários para essa “premiação por produtividade repressiva” junto aos grandes empresários nacionais. Do mesmo modo que Paulo Henrique Sawaya, assessor de Antônio Delfim Neto, ministro da economia da ditadura por longo período, que arrecadava junto às multinacionais. Sabe-se que o ex-juiz Nicolau dos Santos Neto seria um arrecadador do mesmo tipo de financiamento junto às médias empresas e um achacador junto à pequenas empresas. A diferença é que Boilesen ia mais longe na promiscuidade com o aparelho de repressão. Era um instrutor de torturas e cobrava ingresso para empresários assistirem presas políticas serem torturadas. São fatos nunca negados de que ele introduziu dois instrumentos de torturas conhecidos por seu nome: a “pianola Boilesen” e o “microfone Boilesen”. É de se supor o óbvio, que quem arrecada dinheiro para uma atividade não declarada e tão sórdida, receberia uma comissão por esse trabalho sujo.
CDR: Como enxerga o papel das organizações armadas no enfrentamento à ditadura e qual o balanço? Quais eram as dificuldades da unidade da esquerda revolucionária?
Ivan Seixas: Não há como negar que a luta armada urbana cumpriu um papel de denúncia política dos crimes da ditadura. Se não fosse a captura do embaixador dos EUA, o mundo nunca saberia que aqui havia uma ditadura, que era sustentada pelo imperialismo dos EUA, que havia presos políticos e que eram barbaramente torturados. Do mesmo modo que se a esquerda não tivesse queimado os carros da Folha de São Paulo, nunca se saberia que essa empresa colaborava e emprestava seus carros de entrega para montar armadilhas contra militantes das organizações armadas e também as não empenhadas na luta armada. E se as organizações revolucionárias não tivessem justiçado Boilesen nunca se saberia do envolvimento empresarial com as torturas e que esse mercenário era um instrutor de torturas.
No meu modo de ver, a experiência de luta armada urbana, criada por Raul Sendic, líder guerrilheiro do Movimiento de Liberación Nacional – Tupamaros, e sistematizada por Carlos Marighella em seu Mini-manual do Guerrilheiro Urbano, não foi superada até os dias de hoje. Fomos derrotados, mas não se pode dizer que a experiência tenha sido derrotada. Todas as experiências revolucionárias sofreram derrotas antes de serem vitoriosas. Por exemplo, a insurreição na Rússia foi derrotada várias vezes antes de ser vitoriosa.
No entanto, é um fato que nós, que nos dedicamos a luta armada no Brasil, saímos estigmatizados como terroristas. Esse estigma foi feito pela ditadura e também pelos setores reformistas, que nunca fizeram sua autocrítica por não terem se preparado e preparado as massas trabalhadoras para resistir ao golpe e à ditadura. E, muito mais que isso, nunca fizeram uma autocrítica por terem abandonado o objetivo da tomada do poder. Se metem a fazer críticas sobre nossa experiência armada, mas esquecem de que abandonaram a tomada do poder ainda na década de 1950.
CDR: A transição pactada entre a oposição burguesa e os militares garantiu a impunidade tanto dos carrascos da ditadura quanto dos empresários que patrocinavam torturas e assassinatos. Como enxerga hoje o governo Bolsonaro/Mourão?
Ivan Seixas: O grande pacto de silêncio e impunidade feito pelos setores da oposição consentida e militares envolvidos em torturas, assassinatos e desaparecimentos se estendeu aos governos democráticos progressistas do período pós-ditadura. O medo de que as Forças Armadas poderiam voltar a torturar e matar serviu como pretexto para garantir a impunidade aos carrascos. Não era de todo sem sentido esse medo, mas deveria ser enfrentado com coragem e determinação. Ao contrário, a sociedade brasileira sucumbiu ao medo e aceitou deixar impunes os carrascos torturadores, mandantes e financiadores das torturas e assassinatos. O mesmo medo da volta ao “terrorismo de Estado” justificou a não punição dos crimes de lesa-pátria, de traição aos interesses brasileiros, que atrelaram nosso país aos interesses do imperialismo dos EUA. Terrorismo de Estado é como ficaram conhecidas as ditaduras na América Latina.
O governo do delinquente Bolsonaro é fruto desse medo e dessa impunidade. Basta olhar para os personagens que deram o golpe de 2016, elegeram Bolsonaro e legitimaram o governo composto por tantos militares, que se percebe que a impunidade foi premiada outra vez. Além disso, a não punição de torturadores, mandantes e financiadores serviu de exemplo péssimo para a faixa fascista da população, que foi encorajada a sair do armário e passar a fazer a apologia da ditadura e dos crimes da ditadura como se fosse algo correto. Daí a repetição que deveria ser evitada, se não tivesse havido o pacto de silêncio e impunidade.
Se é verdade que a história não se repete a não ser como farsa ou tragédia, no presente momento estamos vendo um outro golpe de Estado e a implantação de um regime autoritário após um período de governos reformistas, como aconteceu com o Brasil, em 1964. A diferença é que acontece agora com um aperfeiçoamento de métodos e de meios para esse golpe. Outra vez o imperialismo dos EUA agrediu nosso país e nosso povo, outra vez a direita brasileira se coloca a serviço do capital internacional e mais uma vez é instalado um governo que retira direitos da classe trabalhadora. A diferença é que não usaram as Forças Armadas para assaltar o poder e os cofres públicos, como ocorreu em 1964. Desta vez usaram o judiciário para alterar a disputa e manipularam o processo eleitoral, além disso, deram o golpe de Estado com a sempre presente mídia golpista.
O que surpreende é que, mais uma vez, o campo progressista acreditou na democracia burguesa e numa suposta civilidade da direita brasileira, que iria respeitar as conquistas da população trabalhadora. A ingenuidade e a crença nas instituições burguesas é surpreendente. A única explicação que se pode chegar é que, infelizmente, não há um partido com o objetivo de tomada do poder e derrubada da ditadura econômica da burguesia e, portanto, que tenha a intenção de fazer mudanças radicais e estruturais na sociedade brasileira. Os partidos progressistas não são e nunca serão agentes motores da transformação radical, que pode ser uma revolução ou mesmo uma mudança estrutural a partir da Constituição e das leis. Mas, os partidos que se definem como de esquerda deveriam fazer esse papel transformador, mas não fazem. Só se pode concluir que não há partidos de esquerda no país. Isso leva à exigência de construção de um partido transformador e revolucionário, que a classe trabalhadora espera.
Nos últimos acontecimentos no país, a burguesia deu uma aula explícita de teoria do Estado, para não deixar dúvidas e mostrar que Marx e Lênin tinham toda razão. Ficou evidente que a burguesia é a dona do Estado, que ela pode fazer e desfazer todos os arranjos legais que lhe interessem, que os três poderes são uma mera representação das vontades da classe dominante, que usará da força sempre que necessário para execução do que bem entender e que a mídia é, como dito por Gramsci, parte do Estado ampliado de dominação.
As pessoas e os segmentos que não aceitam mais esse comportamento acomodado e, em última análise, mantenedor da ordem burguesa vigente, precisam se organizar e formar agremiações transformadoras, que pressionem os partidos existentes para que sejam feitas as transformações que a classe trabalhadora exige. Essa pressão não precisa ser dentro desses partidos existentes, mas dentro dos movimentos populares. E, a longo prazo, que se forme um verdadeiro partido revolucionário, com atuação verdadeiramente revolucionária.
Leia também Devanir José de Carvalho: homenagem a um operário militante, por Ivan Seixas.
Para ler sobre o tema, indicamos:
A resistência armada na luta contra a opressão, artigo de Ivan Akselrud e Maurice Politi.
Movimento Revolucionário Tiradentes: a guerrilha operária, cartilha do Núcleo Memória.
“Se dez vidas tivesse, dez vidas daria”: o Movimento Revolucionário Tiradentes e a participação da classe trabalhadora na resistência (1964-1971), dissertação de mestrado de Yuri Rosa de Carvalho.
Boilesen, executado na alameda Casa Branca, São Paulo, em 15 de abril de 1971.