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Lucy Parsons e o 1º de Maio: Eu sou uma Anarquista

Eu sou uma anarquista. Suponho que vocês tenham vindo aqui, a maioria de vocês, para ver como é uma anarquista de verdade ao vivo. Suponho que alguns de vocês esperavam me ver com uma bomba em uma das mãos e uma tocha em chamas na outra, mas estão desapontados por não ver nem uma coisa nem outra. Se tais têm sido suas ideias sobre anarquistas, vocês mereceram estar desapontados. Anarquistas são pessoas pacíficas, cumpridoras da lei. O que anarquistas querem dizer quando falam em anarquia? Webster [1] dá ao termo duas definições: caos e o estado de existir sem norma política. Nós nos atemos à última definição. Nossos inimigos sustentam que acreditamos apenas na primeira.

Você se pergunta por que existem anarquistas neste país, nesta grande terra da liberdade, como vocês amam chamá-la? Vá a Nova York. Ande pelas vielas e becos dessa grande cidade. Conte as miríades [2] famintas; conte os ainda mais numerosos milhares que estão sem teto; numere aqueles que trabalham mais duro do que escravos e vivem com menos e têm menos conforto que o escravo mais humilde. Você ficará perplexo com suas descobertas, você que não prestou nenhuma atenção a esses pobres, salvo como objetos de caridade e comiseração. Eles não são objetos de caridade, eles são vítimas da injustiça de classe que permeia o sistema de governo, e da política econômica que domina do Atlântico ao Pacífico. Sua opressão, a miséria que ela causa, a desgraça a qual dá origem, são encontradas em maior extensão em Nova York do que em qualquer outro lugar. Em Nova York, onde não muitos dias atrás dois governos se uniram para desvelar uma estátua da liberdade, onde uma centena de bandas tocou aquele hino de liberdade, ‘A Marselhesa’ [3]. Mas praticamente a mesma situação é encontrada entre os mineiros do Oeste, que vivem na miséria e vestem trapos, para que os capitalistas, que controlam a terra que deveria ser livre para todos, possam adicionar ainda mais aos seus milhões! Ah, existem muitas razões para a existência de anarquistas.

Mas em Chicago eles acham que anarquistas não têm qualquer direito de existir, de forma alguma. Querem enforcá-los lá, legalmente ou ilegalmente. Vocês ouviram sobre um certo encontro do Haymarket. Vocês ouviram sobre uma bomba. Vocês ouviram sobre prisões e mais prisões feitas pelos detetives. Aqueles detetives! Há um bando de homens, pior ainda, bestas! Detetives de Pinkerton! Eles fariam qualquer coisa. Tenho certeza que capitalistas queriam que um homem jogasse aquela bomba no encontro do Haymarket para culpar os anarquistas por isso. Pinkerton poderia ter feito isso para ele. Vocês ouviram bastante sobre bombas. Vocês ouviram que os anarquistas disseram muito sobre dinamite. Lhes disseram que Lingg fazia bombas. Ele não violou nenhuma lei. Bombas de dinamite podem matar, podem assassinar, assim como as metralhadoras. Suponham que aquela bomba tenha sido jogada por um anarquista. A constituição diz que existem certos direitos inalienáveis, dentre os quais estão a liberdade de imprensa, de expressão e de reunião. Aos cidadãos desta grande terra é dado pela constituição o direito de repelir a invasão ilegal destes direitos. O encontro na praça do Haymarket foi um encontro pacífico. Suponham que, quando um anarquista viu a polícia chegar em cena, com um olhar assassino, determinada a dissolver aquele encontro, suponha que ele tenha jogado aquela bomba; ele não teria violado nenhuma lei. Esse será o veredicto de seus filhos. Se eu estivesse lá, se tivesse visto aquela abordagem policial assassina, se tivesse ouvido aquele insolente comando para dispersar, se tivesse ouvido Fielden dizer, ‘Capitão, este é um encontro pacífico,’ se tivesse visto as liberdades de meus compatriotas serem esmagadas, eu mesma teria jogado aquela bomba. Eu não teria violado nenhuma lei, apenas cumprido a constituição.

Se os anarquistas tivessem planejado destruir a cidade Chicago e massacrar a polícia, por que teriam apenas duas ou três bombas em mãos? Tal não era a intenção. Foi um encontro pacífico. Carter Harrison, o prefeito de Chicago, estava lá. Ele disse que foi um encontro tranqüilo. Ele disse a Bonfield [Capitão John Bonfield, Comandante da Delegacia Policial de Des Plaines] para colocar a polícia a postos. Eu não me posiciono aqui para me regojizar com a morte daqueles policiais. Eu desprezo o assassinato. Mas quando a bala do revólver de um policial mata é tão assassinato quanto a morte que resulta de uma bomba.

A polícia partiu pra cima do encontro quando ele estava por dispersar. O Sr. Simonson falou com Bonfield sobre o encontro. Parsons foi ao encontro. Ele levou sua esposa, duas moças e seus dois filhos [4] junto. Perto do fim do encontro, ele disse, ‘Acho que vai chover. Vamos continuar no Zeph’s hall.’ Fielden disse que já estava terminando sua fala e encerraria por ali. As pessoas estavam começando a se dispersar, mil dos mais entusiastas ainda persistiam apesar da chuva. Parsons e aqueles que o acompanhavam tomaram o rumo de casa. Eles haviam chegado até a delegacia de Desplaines quando viram a movimentação repentina da polícia. Parsons parou para ver qual era o problema. Aqueles 200 policiais partiram para pegar os anarquistas. E então nós continuamos nosso caminho. Eu estava no Zeph’s hall quando ouvi aquela terrível detonação. Seu estrondo correu o mundo. Tiranos estremeceram e sentiram que havia algo errado.

A descoberta da dinamite e seu uso por anarquistas é uma repetição da história. Quando a pólvora foi descoberta, o sistema feudal estava no auge de seu poder. Sua descoberta e uso criaram as classes médias. Seu primeiro disparo anunciou a sentença de morte do sistema feudal. A bomba em Chicago anunciou a queda do sistema salarial do século dezenove. Por quê? Porque eu sei que nenhum povo inteligente se submeterá ao despotismo. O primeiro significa a difusão de poder. Digo que nenhum homem o use. Mas foi uma conquista da ciência, não do anarquismo, e serviria para as massas. Eu suponho que a imprensa dirá que eu sou uma traidora. Se eu violei qualquer lei, me prendam, me dêem um julgamento e a punição adequada, mas deixem que o próximo anarquista que vier ventile suas idéias sem obstáculos.

Bem, a bomba explodiu, as prisões foram feitas e então veio aquela grande farsa judicial, que começou em 21 de junho. O júri estava formado. Tem algum Knight of Labor [5] aqui? Então saiba que um Knight of Labor não era considerado competente o suficiente para servir naquele júri. ‘Você é um Knight of Labor?’ ‘Você tem alguma simpatia por organizações trabalhistas?’ eram as perguntas feitas a cada jurado. Se a resposta fosse afirmativa, o jurado era dispensado. Não era ‘você é um maçom?’, ‘um Cavaleiro Templário’? Ah, não! [Grande aplauso.] Dá pra ver com isso o estado em que as coisas se encontram. O Enforcador Gary, indevidamente chamado de juiz, determinou que se um homem tivesse preconceito contra os réus, isso não o incapacitaria de servir ao júri. Por que tal homem, disse o Enforcador Gary, prestaria mais atenção à lei e evidência e estaria mais apto a dar um veredicto para a defesa. Tem algum advogado aqui? Se tem ele sabe que tal determinação não tem precedentes e é contrária a todas as leis, razão e senso comum.

No calor do patriotismo o cidadão americano às vezes derrama uma lágrima pelo niilista da Rússia. Eles dizem que o niilista é injustiçado, que é condenado sem julgamento. Quão mais ele deveria chorar pelo seu vizinho do lado, o anarquista, a quem é dado tal forma de julgamento sob tal determinação.

Havia delatores apresentados como testemunhas da promotoria. Havia três deles. Cada um deles foi compelido a admitir que havia sido comprado e intimidado pela promotoria. Ainda assim o Enforcador Gary considerou suas evidências válidas. Foi considerado no julgamento que o encontro do Haymarket não foi resultado de nenhuma conspiração, mas que foi realizado com essa intenção. Na véspera do dia que os escravos do salário da fábrica McCormick fizeram greve por uma jornada de 8 horas de trabalho, McCormick, de seu luxuoso escritório, com uma canetada de seus dedos ociosos, cheios de anéis, tornou 4.000 homens desempregados. Alguns se reuniram e apedrejaram a fábrica. Logo, eram anarquistas, disse a imprensa. Mas anarquistas não são bobos; apenas bobos apedrejam prédios. A polícia foi enviada e matou seis escravos do salário. Você não sabia disso. A imprensa capitalista abafou o caso, mas fez um grande alarde por causa da morte de seis policiais. Então estes anarquistas loucos, como são chamados, pensaram que deveria haver um encontro para refletir sobre o assassinato de seis companheiros e para discutir o movimento pelas 8 horas. O encontro aconteceu. Foi pacífico. Quando Bonfield ordenou à policia que acusasse aqueles anarquistas pacíficos, ele tripudiou da bandeira americana e deveria ter levado um tiro ali mesmo.

Enquanto a farsa judicial seguia as bandeiras vermelhas e negras foram levadas à corte, para provar que os anarquistas jogaram a bomba. Elas foram penduradas nas paredes e deixadas lá, espectadoras horríveis diante do júri. O que a bandeira negra significa? Quando um cabograma diz que ela foi carregada pelas ruas de uma cidade européia significa que as pessoas estão sofrendo — que os homens estão sem trabalho, as mulheres famintas e as crianças descalças. Mas você diz que isso é na Europa. E quanto à América? O [jornal] Chicago Tribune disse que haviam 30.000 homens na cidade sem nada para fazer. Outra autoridade disse que haviam 10.000 crianças descalças no auge do inverno. A polícia disse que centenas não tinham casa para dormir ou se aquecer. Então o presidente Cleveland fez seu discurso de Ação de Graças e os anarquistas se juntaram em procissão e carregaram a bandeira negra para mostrar que aqueles milhares não tinham pelo que agradecer. Quando a Junta Comercial, aquele covil especulativo, foi consagrado por meio de um banquete — a $30 o prato — de novo a bandeira negra foi carregada, para significar que haviam milhares que não podiam aproveitar uma refeição de 2 centavos.

Mas a bandeira vermelha, aquela horrível bandeira vermelha, o que ela significa? Não que as ruas deviam virar um rio de sangue, mas que o mesmo sangue vermelho corre pelas veias de toda a raça humana. Significa a irmandade do homem. Quando a bandeira vermelha flutuar sobre o mundo o ocioso será chamado ao trabalho. Haverá um fim à prostituição das mulheres, à escravidão dos homens e à fome das crianças.

Liberdade foi nomeada anarquia. Se esse veredicto for levado a cabo será a sentença de morte da liberdade da América. Vocês e seus filhos serão escravos. Vocês terão liberdade se puderem pagar por ela. Se este veredicto for levado a cabo, coloquem a bandeira de nosso país a meio mastro e escrevam em cada dobra ‘vergonha’. Deixem que nossa bandeira seja arrastada na poeira. Deixem que os filhos dos trabalhadores coloquem louros na fronte desses heróis modernos, pois eles não cometeram nenhum crime. Quebre os grilhões. Pão é liberdade e liberdade é pão.

[1] Noah Webster Jr. (16 de outubro de 1758–28 de maio de 1843), famoso dicionarista estadunidense.
[2] Míriade: um grande número de pessoas.
[3] Hino nacional da França, escrito durante a revolução francesa.
[4] Um menino, Albert Parsons Jr. e uma menina, Lulu Eda Parsons.
[5] Knights of Labor foi uma organização sindical estadunidense fundada em 1869, que agremiava tanto trabalhadores especializados quanto trabalhadores não especializados e que fez campanha pelas 8 horas de trabalho.

* Lucy Eldine Gonzalez Parsons (1853-1942), revolucionária anarquista nascida como escravizada em 1853 no sul dos EUA, filha de uma negra mexicana e pai indígena do povo Creek. Lucy Parsons foi uma destacada sindicalista revolucionária tendo participado da revolta de Haymarket de 1886 em Chicago, que deu origem ao 1º de Maio, e da fundação da IWW (Industrial Workers of the World), foi casada com o anarquista Albert Parsons, um dos mártires de Chicago. Militante incansável, oradora habilidosa e escritora apaixonada, Lucy Parsons dedicou mais de sessenta anos da sua vida à organização da classe trabalhadora e dos/as oprimidos/as e a luta revolucionária contra a exploração capitalista e a supremacia branca.

* Publicado originalmente em The Kansas City Journal, 21 de dezembro, 1886. Tradução por Roxo e Negro. Outros textos e artigos traduzidos de Lucy podem ser encontrados em Lucy Parsons em Português.

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