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Pela senda revolucionária de Carlos Lamarca

Publicado originalmente como apresentação do livro “Lamarca – Ousar Lutar, Ousar Vencer” (220 págs; 2021), do Editorial Adandé.

A Operação Pajussara organizada pelo Destacamento de Operações e Informações – Centro de Operações e Defesa Interna, o famigerado DOI-CODI, envolveu gastos declarados que em valores atuais somariam um montante de cerca de 900 mil reais. Acompanhada de perto pelos organismos do imperialismo norte-americano no país, as duas fases da operação contaram oficialmente com a participação de 215 militares e policiais da Bahia, Guanabara, Pernambuco e São Paulo, tinha a participação direta do sanguinário delegado Sérgio Paranhos Fleury e teve como comandante o major Nilton de Albuquerque Cerqueira. As equipes formadas pela repressão foram batizadas com nomes como Lobo, Leão, Tigre, Onça e Águia. Atuaram também, além do IV Exército e a 6ª Região Militar, os serviços de informação da Aeronáutica (CISA), do Exército (CIE) e da Marinha (Cenimar), o Primeiro Esquadrão Aeroterrestre de Salvamento (Para-Sar), alguns DOPS estaduais e três grandes empresas tiveram envolvimento direto nas operações de repressão, a Companhia de Mineração Boquira, a Petrobras e a TransMinas, que enviaram pessoal, veículos e aeronaves.

Todo esse aparato tinha como objetivo liquidar o Movimento Revolucionário 8 de Outubro, o MR-8, pôr fim a sua tentativa de instalar áreas de guerrilha rural na Bahia, caçar e assassinar o mais importante comandante guerrilheiro e que havia assumido a condição de principal inimigo público da ditadura militar fascista no Brasil em 1970, o ex-capitão do Exército brasileiro, Carlos Lamarca. Segundo o relatório produzido pelo Ministério do Exército, a operação tinha como função central “destruir o mito representado por Lamarca”, pois a adesão de um militar exemplar à luta armada contra o regime era um exemplo que assombrava os generais serviçais do imperialismo. Com grande cobertura sensacionalista da mídia burguesa, a ditadura realizou na região de Brotas de Macaúbas um verdadeiro massacre de camponeses, com bombardeios em povoados, helicópteros e torturas de pessoas acusadas de colaborar com os guerrilheiros, sendo parte delas amarradas em uma cruz improvisada no campo de futebol do povoado de Buriti Cristalino. 

A figura histórica de Lamarca ainda desperta paixões mesmo passado meio século de seu assassinato. O menino franzino criado na zona central do Rio de Janeiro e que quase morreu de uma pneumonia dupla quando criança é um herói do povo brasileiro com uma importante memória viva no país. O dia 17 de setembro é sempre marcado em Brotas de Macaúbas e Ipupiara por um feriado local, quando também se realiza anualmente uma procissão até o Memorial dos Mártires homenageando os guerrilheiros e camponeses mortos.

Lamarca figura entre os maiores ícones da luta armada revolucionária na América Latina, é reivindicado, contraditoriamente, pela mesma esquerda reformista e covarde à qual combateu firmemente, e ainda desperta o ódio tenaz de fascistas e militares saudosistas da ditadura, sendo o principal personagem de uma das mentiras recorrentes do ex-deputado corrupto e miliciano que assumiu a presidência do Brasil em 2019. Segundo Jair Bolsonaro, em um de seus delírios mitomaníacos, ele próprio teria, com apenas 15 anos de idade e morando em Eldorado Paulista (SP), ajudado militares na caçada a Lamarca durante o gigantesco cerco aos guerrilheiros da Vanguarda Popular Revolucionária, a VPR, no campo de treinamento do Vale do Ribeira.

O homem assassinado covardemente aos 33 anos, em uma sexta-feira às 15:40h, enquanto tentava se recuperar à sombra de uma baraúna nas caatingas do povoado de Pintada, após 21 dias de perseguição no sertão baiano e cujo corpo caído foi eternizado em fotografia ao lado do seu companheiro da última batalha, Zequinha Barreto, era o terceiro filho do sapateiro Antônio Lamarca com a dona de casa Gertrudes da Conceição. Carlos Lamarca nasceu em 27 de outubro de 1937, foi criado no Morro de São Carlos, no Estácio, na então capital federal, com mais 5 irmãos. Sua politização tem raízes nas influências anarquistas de seu avô, imigrante italiano que passou a profissão de sapateiro para seu pai, Antônio. Apelidado de “Careca” pelos colegas de infância, o pequeno Carlos Lamarca se destacou nas escolas onde estudou, fazendo o primário na Escola Canadá e o ginasial no colégio de padres Instituto Arcoverde. Ainda adolescente participa das manifestações de rua durante a campanha nacionalista O Petróleo é Nosso.

Em abril de 1955, após tentativas frustradas em Campinas e Fortaleza, Lamarca consegue ingressar na Escola Preparatória de Cadetes de Porto Alegre, sendo motivo de orgulho para sua pobre família carioca. Em 1957, transfere-se para a Academia Militar das Agulhas Negras, em Resende (RJ). Nesse período uma célula clandestina do PCB que atuava no meio militar inseria panfletos do Partidão e o jornal Voz Operária entre os travesseiros e lençóis dos cadetes. Lamarca passa a ser simpatizante e chega a solicitar sua entrada no PCB, recuando após conselhos de companheiros.

Em 1959, se casaria secretamente com Maria Pavan, sua irmã de criação e que já esperava o primeiro filho do casal. É nesse contexto que Lamarca começa a se interessar pela leitura de autores marxistas e de livros como “Guerra e Paz”, do escritor russo Liev Tolstói (1828-1910). Com um perfil reservado e muito disciplinado, esteve nos EUA e no México com bolsas de estudos e conheceu boa parte do Brasil servindo ao Exército. Após três anos de estudos e treinamentos militares intensos tem a primeira promoção da carreira, sendo declarado como aspirante-a-oficial em dezembro de 1960 e designado para o 4º Regimento de Infantaria, em Quitaúna, Osasco (SP). No ano seguinte passaria à condição de segundo-tenente.

Em 1962, Lamarca é convocado para servir no 11º Contingente das tropas brasileiras que integraram o Batalhão Suez nas Forças de Paz da ONU, atuando na região de Gaza, na Palestina, após a invasão da Península do Sinai por Israel com o apoio dos governos francês e britânico, em retaliação à nacionalização do Canal de Suez feita pelo presidente do Egito, o socialista árabe Gamal Abdel Násser. Permaneceu 18 meses no Oriente Médio, de onde retornou em 1963 impactado com a pobreza e a realidade cruel a que estavam submetidos os povos árabes, afirmando que “se fosse combater, para ser justo, teria que passar para o lado deles” e que foi nessa experiência onde “tomou maior consciência da pobreza”, comparando a situação vivida em Gaza com a fome no Brasil.

Após seu retorno, Lamarca seria promovido a primeiro-tenente e incorporado à 6ª Companhia de Polícia do Exército (PE), em Porto Alegre. Estava servindo nessa unidade quando teve início o golpe militar planejado pelos EUA, que derrubou João Goulart em 1º de abril de 1964. Em dezembro daquele ano realizaria o que pode ser considerada sua primeira ação, possibilitando a fuga do capitão-aviador Alfredo Ribeiro Daudt, preso pelos golpistas sob a acusação de atividade subversiva, e por isso, Lamarca responderia à um inquérito administrativo, mas sem consequências. Em 1965, o então tenente Lamarca pede transferência para retornar ao 4º Regimento de Infantaria em Quitaúna.

Novamente em Osasco, será campeão de tiro no II Exército e promovido a capitão em 1967. Já estava decido em combater a ditadura quando procura o sargento Darcy Rodrigues, que havia conhecido em 1962. Darcy, que honrosamente carregaria a patente de lugar-tenente de Lamarca, já era um militante de esquerda desde à juventude e foi preso por 2 meses em 1964, mas logo reintegrado ao Exército, sendo também uma importante referência do Clube dos Sargentos. Segundo Darcy, Lamarca lhe disse nesse momento que era necessário “sair do Exército para combater os traidores de fora para dentro”.

Lamarca, Darcy, o cabo José Mariane Ferreira e o soldado Carlos Roberto Zanirato montam, então, uma pequena célula de militares comunistas que funcionava também como grupo de estudos, onde liam obras de Che Guevara, Mao Tsé-tung e Vladimir Lenin. Buscam contatos, principalmente, com militantes do Movimento Nacionalista Revolucionário, o MNR, que havia sido formado essencialmente por militares cassados inspirados por Leonel Brizola e pelo castro-guevarismo, iniciando a tentativa de estabelecer um foco de guerrilha rural na Serra do Caparaó, na divisa entre o Espírito Santo e Minas Gerais, entre os anos 1966-67. Após a desarticulação do MNR, seus remanescentes, já decepcionados com o brizolismo e sob a destacada liderança do ex-sargento Onofre Pinto, fundam em 15 de julho de 1967, em uma reunião na casa da dirigente Dulce Maia, o que chamam, inicialmente, de Organização. Ainda durante o segundo semestre daquele ano recebem a adesão de alguns dissidentes do PCB e de setores operários de Osasco, além de uma dissidência paulista da ORM-PO (Organização Revolucionária Marxista – Política Operária, ou POLOP) saída em seu IV Congresso. Em 7 de dezembro de 1967, em um congresso realizado em Peruíbe, no litoral paulista, nascia oficialmente a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), contando com setores de logística, urbano e de campo.

Apenas em 1968, quando de fato a luta armada toma forma no país, é que o pequeno núcleo de Lamarca e Darcy consegue estabelecer negociações mais diretas para aderir à resistência revolucionária contra o regime dos generais. A VPR tem participação decisiva na histórica Greve de Osasco de julho de 1968 e um mês antes havia realizado a expropriação de onze fuzis FAL no Hospital Militar do Cambuci. Uma ação que chama a atenção de Lamarca, mas o capitão rebelde também abre negociações com a organização de Carlos Marighella e Joaquim Câmara Ferreira, além de manter contatos que não progridem com a direção maoísta do PCdoB.

Marighella havia retornado de Cuba no fim de 1967 e arrastado consigo grande parte da dissidência do PCB, fundando inicialmente o Agrupamento Comunista de São Paulo, no início de 1968, mas que logo daria origem à Ação Libertadora Nacional (ALN). As organizações armadas mantêm uma relação de colaboração e disputa, com a cooperação entre a VPR e a organização que viria ser batizada como ALN tendo seu auge na ação conjunta de justiçamento do capitão do exército norte-americano e agente da CIA que treinava torturadores para a ditadura militar fascista no Brasil, Charles Rodney Chandler, em outubro de 1968, chegando as duas organizações, nesse período, a debaterem a fusão para o início da guerrilha rural e as possíveis “zonas liberadas” no campo.

Lamarca e Marighella se encontram ainda em setembro de 1968, o veterano comunista baiano propõe ao capitão assumir o comando militar de sua organização ao deixar o Exército e assinar um manifesto conclamando o povo brasileiro para derrubar a ditadura militar, garante também retirar sua família em segurança do país e enviar sua esposa e filhos para Cuba, mas a afinidade de Lamarca é mesmo com ex-militares da VPR, onde, além de Onofre, destacam-se também as lideranças de Diógenes José Carvalho, Dulce Maia e Pedro Lobo, ex-sargento da Força Pública. Grupo este, que havia lançado em junho o carro-bomba contra o QG do 2º Exército, no Ibirapuera, e com o qual o núcleo de Quitaúna já vinha colaborando, há alguns meses, com informações e desvios de munições do quartel.

O ano de 1968 havia sido explosivo em todo o mundo. No Brasil, a preparação para a luta armada e tentativas de focos guerrilheiros contra a ditadura haviam sido iniciados antes com a conspiração entre militantes da POLOP e ex-marinheiros para entabular a luta guerrilheira em Minas Gerais, mas que foi desbaratada ainda em 1964 pela repressão e ficou conhecida como “Guerrilha de Copacabana”; a Guerrilha de Três Passos do Movimento Revolucionário 26 de Março (MR-26) em 1965; o próprio MNR com a Guerrilha do Caparaó em 1966-67; a Resistência Armada Nacionalista (RAN) liderada pelo ex-almirante Cândido Aragão que operou do Uruguai em 1966; o Partido Comunista Revolucionário (PCR) fundado no Nordeste em 1966, a partir de uma dissidência do Partido Comunista do Brasil (PCdoB); e, o primeiro Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), formado ainda em 1966, principalmente pelas dissidências do PCB no Rio de Janeiro e Paraná, mas também contando com militantes vindos dos brizolistas “Grupos dos 11”, das Ligas Camponesas, da POLOP e da Ação Popular (AP), que depois assumiria como nome a data em referência a morte do comandante Che Guevara na Bolívia e tentaria iniciar um foco guerrilheiro no oeste do Paraná em fins de 1967. Porém, as ações de guerrilha urbana começam a tomar mesmo volume com a VPR e a ALN. Aparecem também o COLINA (Comando de Libertação Nacional) formado de outro racha da POLOP em fins de 1967 em Minas Gerais, Guanabara e Paraná; as Forças Armadas de Libertação Nacional (FALN), vindas de uma dissidência do interior paulista do PCB; e, após a expulsão de um setor na 6ª Conferência do PCdoB, se forma a Ala Vermelha para iniciar ações armadas urbanas, visto que o partido fundado em 1962, após a primeira luta interna importante no Partidão, havia assumido a estratégia maoísta da guerra popular e prolongada a partir do campo, negando a luta nas cidades e dedicando-se exclusivamente ao trabalho de preparação das Forças Guerrilheiras do Araguaia (FOGUERA) a partir de 1966-67.

O primeiro ano do biênio insurgente de 1968-69 no Brasil, seria marcado também por um levante da juventude nas grandes cidades após o assassinato do estudante secundarista Edson Luís de Lima Souto em 28 de março de 1968 no restaurante Calabouço (RJ), servindo de estopim para diversas lutas estudantis que vinham se acumulando desde 1966 com os enfretamentos contra o acordo MEC-USAID e culminaram na grande Passeata dos Cem Mil, realizada em 26 de junho no Rio de Janeiro.

As greves operárias também avançam no bojo das lutas contra o arrocho salarial e a carestia iniciadas ainda em 1965, e antes mesmo da Greve de Osasco, seria emblemática a Greve de Contagem, em abril de 1968, com a ocupação da Belgo-Mineira pelos metalúrgicos, a paralisação se alastrando por toda a cidade industrial e a importante atuação das organizações da esquerda (AP, POLOP, COLINA, Corrente Revolucionária – que iria aderir a ALN – e o próprio PCB) no movimento paredista que seria vitorioso sobre os patrões e o arrocho da ditadura. Nesse mesmo ano, a luta operária mostraria sua força também no episódio da tomada do palanque do 1º de Maio da Praça da Sé e a expulsão do governador Abreu Sodré e dos pelegos, na ação onde se destacaria o guerrilheiro-operário Marco Antônio Brás, o Marquito, primeiro comandante militar da ALN.

A divisão na Igreja Católica avança, com o setor progressista do cristianismo engajando-se cada vez mais na luta contra a ditadura, sendo a posição contra o regime de Dom Helder Câmara, um dos fundadores da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), muito simbólica neste momento e uma expressão dessa disputa com a ala conservadora, assim como, a radicalização da Ação Popular (AP), formada ainda em 1962 a partir da Juventude Universitária Católica (JUC) e da  Juventude Estudantil Católica (JEC) e que nesse período avança para a luta armada, se dividindo depois entre o Partido Revolucionário dos Trabalhadores (PRT) e a Ação Popular Marxista Leninista (APML), da qual o setor majoritário depois iria aderir ao PCdoB.      

Uma dupla disputa, na esquerda e no regime, marca esse ano que vai acabar com o “golpe dentro do golpe”, o endurecimento do regime e o Ato Institucional nº 5 de 13 de dezembro de 1968.

De um lado, os grupos armados em grande parte formados por dissidências do PCB se tornaram maioria na esquerda brasileira e dedicam-se às expropriações, justiçamentos, ações de propaganda armada e suporte às lutas operárias e populares. Surgem também novas organizações, como o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR) liderado por Mário Alves, Jacob Gorender e o veterano Apolônio de Carvalho e o Partido Operário Comunista (POC) com a fusão entre os remanescentes da POLOP e a Dissidência Leninista do Rio Grande do Sul. Mas o protagonismo da luta armada cabe mesmo a ALN e a VPR, que convergindo nos métodos e nos respectivos programas inspirados pela Conferência da Organização de Solidariedade Latino Americana (OLAS), e já havendo ambas enviado militantes para treinamento em Cuba no chamado “Primeiro Exército”, mantinham perspectivas organizacionais bastante díspares e vinham de tradições diferentes na esquerda brasileira.

Do outro lado, no regime fascista dos generais, diferentes alas militares também disputam a radicalização da ditadura e organizações paramilitares de extrema-direita entram em cena. Destaca-se a figura pitoresca de Aladino Félix, um lunático místico com influências sionistas, que fazia aparições em programas de TV e Rádio da época usando diversos pseudônimos como Sábato Dinotos e Dino Kraspedon, e afirmava ter contato e ajuda de extraterrestres. Responsável pela tradução das Centúrias de Nostradamus e profundo conhecedor dos textos bíblicos, Aladino Félix organiza, com o auxílio do general Paulo Trajano da Silva e homens da Força Pública, diversos atentados à bomba ao longo de 1968, incluindo ao prédio da Bolsa de Valores em São Paulo, ao QG do 2º Exército e ao da Força Pública, sabotagens em trechos de ferrovias na grande São Paulo e até mesmo os assaltos aos bancos Mercantil e Industrial, com o objetivo de atribuir essas ações à esquerda armada.

Outro setor da linha-dura liderado pelo brigadeiro fascista João Paulo Moreira Burnier e contando com homens do Para-Sar no então Estado da Guanabara, planeja sequestrar e assassinar políticos e figuras públicas como Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros, Jango, Dom Helder, Carlos Lacerda e até mesmo o general golpista Olympio Mourão Filho. O plano previa também a explosão do gasômetro da Avenida Brasil e da Represa de Ribeirão das Lages, além de bombas em alvos norte-americanos como o Citibank, as lojas Sears, os postos da Esso e Texaco e na própria Embaixada dos EUA. Com o plano, que estimava provocar cerca de 100 mil mortes, sendo denunciado pelo militar da FAB, Sérgio Ribeiro de Carvalho, após uma reunião onde Burnier o expôs para um grupo de militares, a conspiração de extrema-direita para causar histeria coletiva, mortes em massa e, em consequência, obter carta branca de uma população desesperada para os militares poderem agir contra as organizações guerrilheiras e a oposição moderada foi suspenso, mas João Paulo Burnier, que fez cursos na Escola das Américas, já havia participado da tentativa de golpe contra Kubitschek e organizado uma “missão especial” de snipers para assassinar manifestantes do alto de prédios no Rio de Janeiro, seguiu em seu cargo de chefe do CISA e os objetivos da linha-dura seriam conquistados com o AI-5 sendo decretado no fim do ano de 1968, resultando no fechamento do Congresso Nacional e Assembleias Legislativas, suspensão dos direitos políticos de acusados de subversão, censura prévia, ilegalidade de reuniões, toques de recolher, etc.

Com a radicalização do Movimento Estudantil após a forte repressão marcada por invasões na UNB e no CRUSP, pela Batalha da Maria Antônia contra o Comando de Caça aos Comunistas (CCC) e pelas centenas de prisões no 30º Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE) em Ibiúna (SP), boa parte da militância estudantil passa a confluir para as organizações revolucionárias e engrossar a luta armada. O ano de 1969 promete ser decisivo. É nesse contexto que o núcleo de militares rebeldes agrupados em Quitaúna, liderado por Lamarca e que já integrava a VPR, inicia o plano para desertar do Exército brasileiro e aderir à resistência armada. As discordâncias com Marighella e a ansiedade dos planos de Lamarca afastam o capitão da ALN, mas o comunista baiano cumpre sua palavra, retirando as esposas e filhos de Lamarca e Darcy através da rede de solidariedade internacional, que seguem num voo para a Europa antes de chegarem a Cuba. Entretanto, a ALN não aceita o audacioso plano da VPR batizado como “Noite de São Bartolomeu”.

Ávido por iniciar a luta no campo, Lamarca acreditou na estrutura para a guerrilha rural prometida por Onofre Pinto, mas os poucos militantes da organização enviados para Paranaíba, no Mato Grosso, nem mesmo tiveram condições de iniciar o trabalho, muito menos havia algo concreto no Pará. A VPR passava por um processo de luta interna entre os setores apelidados de bang-bang e blá-blá-blá, o segundo Congresso da organização realizado no começo de dezembro de 1968 na praia do Perequê Mirim (Ubatuba, SP), conhecido como Praianada, consolida o poder da ala militar liderada por Onofre e as teses defendidas por Ladislau Dowbor (Jamil), acabando com a expulsão do professor universitário João Quartim Moraes e outros intelectuais que propunham o recuo momentâneo das ações armadas, incluindo a não realização da Noite de São Bartolomeu, e questionavam também a própria entrada de Lamarca na VPR naquele momento.

Outros importantes oficiais já haviam deixado as Forças Armadas para combater o regime, como o coronel Jefferson Cardin que liderou a Guerrilha de Três Passos e o major Joaquim Pires Cerveira, que comandava a Frente de Libertação Nacional, mas a saída de Lamarca seria sem dúvida de maior impacto para o inimigo fardado. O planejamento da Noite de São Bartolomeu, cujo nome remete aos confrontos ocorridos na França em 1572 entre católicos e protestantes, era ousado e partia da premissa guevarista de criar as condições objetivas para o avanço da luta revolucionária apostando na dialética da ação-repressão para transformar a situação política do país definitivamente numa situação militar, induzindo importantes setores das massas populares a aderir à luta armada contra o regime. Os métodos da Frente de Libertação Nacional (FNL) que dirigiu a Revolução Argelina (1954-1962) e a consagrada estratégia guerrilheira de tipo leninista que servia de guia naquele momento para os vietcongs e sua Frente Nacional de Libertação, eram, também, influências determinantes da linha político-militar da VPR.

Apesar de ambicioso, o plano detalhado carecia de adesão e uma estrutura prévia. Com a rejeição de Marighella para a realização conjunta das ações, a VPR decide prosseguir sozinha. Na madrugada do dia 26 de janeiro teria início o delineado. Com o sargento Darcy Rodrigues responsável pela guarda do 4º Regimento de Infantaria nesse dia, o cabo José Mariane e o soldado Carlos Roberto Zanirato trabalhando no depósito de armas deveriam embalar um total de 360 fuzis FAL, além de morteiros e todo armamento possível e suas respectivas munições. Um caminhão dirigido pelo Capitão Lamarca entraria no Quartel de Quitaúna, saindo com o arsenal expropriado antes do meio da tarde e contando com o apoio de guerrilheiros à postos do lado de fora, quando simultaneamente a VPR iniciaria os ataques bombardeando a sede do governo paulista, o Palácio dos Bandeirantes, o Quartel-General do II Exército também estaria em chamas e a Academia Militar de Polícia seria explodida com 100 kg de dinamite, enquanto outros destacamentos guerrilheiros ocupariam o Campo de Marte para controlar o sistema aéreo de São Paulo e transmitiriam mensagens por rádios locais.

A fragilidade do plano se demonstraria alguns dias antes. Em 23 de janeiro o grupo liderado por Pedro Lobo seria denunciado e preso enquanto preparava em Itapecerica da Serra (SP) o caminhão que seria usado na ação de Quitaúna. O sargento José de Araújo Nóbrega, que chegou ao sítio um dia depois, consegue escapar e avisar para a organização. Em uma sexta-feira, dia 24 de janeiro, sabendo das torturas pelas quais passavam os militantes da VPR que haviam caído presos, Lamarca e seus companheiros organizam uma ação de emergência, conseguindo retirar do 4º Regimento ao cair da noite 63 fuzis FAL, 3 metralhadoras INA e alguma munição, usando a desculpa de que seriam usados em um treinamento de tiro. Lamarca vai direito ao Aeroporto de Congonhas se despedir com flores e abraços apertados de Maria e seus pequenos filhos, César e Cláudia. Começaria aí a saga revolucionária do “capitão da guerrilha” contra a ditadura sanguinária dos generais serviçais dos EUA.             

A Vanguarda Popular Revolucionária, após as quedas em Itapecerica, vê sua pequena estrutura cada vez mais abalada e nem mesmo encontra local seguro para as armas de Quitaúna, que permanecem duas semanas na Kombi, até passarem para os cuidados do grupo de Marighella. A prisão de Dulce Maia leva à outras quedas que atingem também a ALN, e Marquito, homem de confiança de Marighella e comandante do Grupo Tático Armado (GTA) é assassinado em uma emboscada da repressão. As duas organizações têm a relação estremecida e se culpam mutuamente. Em outro flanco a repressão avança também sobre o COLINA, quase destruindo a organização. Marighella se nega a devolver as armas, Lamarca faz ameaças, mas com o intermédio do comandante Toledo, Joaquim Câmara Ferreira, chegam ao acordo na divisão do arsenal entre os grupos. Diógenes José e Onofre Pinto também são presos logo em seguida e um novo congresso para reestruturar a VPR se realiza.

Mesmo demonstrando sua disposição apenas para a luta no campo, Lamarca passa a integrar a direção da organização e também a viver as agruras da clandestinidade na guerrilha urbana e o isolamento em aparelhos. Apenas em maio de 1969, Lamarca participa de sua primeira ação após sair do Exército brasileiro. Em uma expropriação dupla de bancos no bairro paulistano do Brás, o capitão atinge fatalmente um guarda que ameaça atirar no sargento Darcy. Identificado na ação, o ex-militar logo passa a estampar as manchetes da mídia sensacionalista, o que ajuda a criar uma aura mítica sobre o ex-oficial exemplar que saiu do quartel com um arsenal para combater o regime.

Confinado em aparelhos, onde não podia nem mesmo se movimentar muito, Lamarca dedica-se ao estudo da teoria marxista e escreve documentos políticos e militares. Em abril, o capitão havia conhecido a mulher com quem viveria uma linda e trágica história de amor, Iara Iavelberg, que havia visto antes rapidamente. Iara fazia parte do grupo de dissidentes da POLOP que ingressou na VPR, cursou psicologia na USP onde iniciou sua militância estudantil. Bela e vinda de uma abastada família judia paulista, havia se casado com apenas 16 anos com um médico, vindo a se separar 3 anos depois. Na USP também participava de iniciativas de teatro e poesia, se torna uma entusiasta da emancipação feminina e do amor livre, atua no serviço popular de psicologia da faculdade e profere aulas em um cursinho. A paixão dos dois seria fulminante, mas enfrentaria diversos problemas. Lamarca tinha um dilema moral diante de sua fidelidade à esposa em Cuba, e Iara, espécie de musa da esquerda revolucionária naquele momento, tinha um comportamento de mulher livre e namoradeira, que abalava inclusive a “moral proletária” da organização.

A ditadura segue com os Atos Institucionais, começando também a atingir intelectuais e artistas, que perseguidos e censurados saem do país, entre eles Paulo Freire, Celso Furtado, Darcy Ribeiro, Florestan Fernandes, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Augusto Boal. A repressão cresce, intensifica os assassinatos e torturas de opositores, a pena de morte é decretada, mas o regime enfrenta do outro lado uma escalada da luta armada em 1969. As dezenas de ações do ano anterior se expandem para além do triângulo Guanabara, São Paulo e Minas Gerais, vão se transformar em centenas de expropriações, justiçamentos, atentados, propaganda armada, distribuições de alimentos em favelas e entram em cena os sequestros políticos. A carestia, a inflação, o arrocho e o flagelo da fome transformam a vida do povo brasileiro em um inferno controlado por uma brutal ditadura, que também assassina camponeses, organiza campos de concentração e bombardeia povos indígenas. Além dos DOPS estaduais, nasce a clandestina Operação Bandeirante (OBAN), articulando militares sádicos e policiais facínoras das várias esferas do regime, com o dinheiro de industriais e empresários. Atuam também, realizando atentados e assassinatos políticos, organizações paramilitares de extrema-direita cúmplices da ditadura, como o CCC e o Movimento Anticomunista (MAC). 

Após entregarem-se ao amor entre um e outro aparelho, Iara segue para o Rio de Janeiro onde inicia as negociações entre a VPR e o que naquele momento se chamava “O pontinho” (abreviatura de Organização, após as quedas no COLINA). Em seu retorno, acompanharia Lamarca, na cirurgia plástica no nariz realizada por um médico simpatizante. Descartada uma fusão com a ALN e permanecendo a desgastada relação entre Lamarca e Marighella, a VPR, ainda combalida, concretiza a fusão com o que resta do COLINA. A nova organização batizada de Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-P) nasce em reuniões entre as duas direções realizadas nos meses de junho e julho de 1969 no litoral paulista, recebe novas adesões e conta com cerca de 300 combatentes espalhados pelo país.

As expropriações continuam e é grande a necessidade de dinheiro para a manutenção da estrutura clandestina das organizações e para a preparação da pretendida coluna guerrilheira no campo. A VAR-P realiza então o que fica conhecida como “a grande ação”, o roubo do cofre do corrupto ex-governador de São Paulo, Ademar de Barros. O dinheiro é parte da “caixinha” arrecadada pelo político do “rouba, mas faz” em anos de propinas e desvios. Com as informações necessárias, um grupo sob o comando de Juarez Guimarães Brito invade a casa da família de uma amante do político em Santa Teresa, no Rio de Janeiro, e consegue levar quase 2,6 milhões de dólares sem precisar disparar um tiro sequer.

Em agosto, tem início o famoso Congresso da VAR-P, realizado em Teresópolis, na região serrana fluminense. Com a confiança na vitória da resistência revolucionária sobre a ditadura, que era admitida naquele momento até pelo próprio imperialismo, o encontro dura inacreditáveis 44 dias se estendendo até setembro. Entre os poucos mais de 30 delegados, além de Lamarca e Darcy, marcaria presença, também, uma jovem guerrilheira vinda do COLINA que usava o codinome Luiza, e que décadas mais tarde se tornaria presidente do Brasil, Dilma Rousseff. Apesar da concordância em temas fundamentais, como o caráter socialista da Revolução Brasileira e a luta armada como caminho fundamental, os grupos se dividem entre as “Teses sobre a Tática” e as “Teses de Jamil” da VPR. A decisão sobre uma organização político-partidária clandestina para realizar o trabalho de massas e operando com um braço armado ou uma organização político-militar nos moldes guevaristas, assim como, a necessidade imediata de iniciar as colunas guerrilheiras no campo e debates sobre o movimento operário e o papel do proletariado marginal, também dividem a nova sigla e se produz o chamado “Racha dos Sete”, onde se juntam ao setor liderado por Lamarca, Darcy e Mário Japa (Chizuo Osava), a própria Iara e depois Juarez Guimarães de Brito e Maria do Carmo Brito, a Lia, que lideram a reorganização da VPR.

O congresso se realiza em meio à crise política do regime, com o general Costa e Silva sendo afastado por motivos de saúde e assumindo uma Junta Militar provisória. A Guanabara ficaria sitiada após um comando conjunto formado pela ALN e pela Dissidência Interna da Guanabara (DI-GB), que assume a sigla MR-8, realizarem o primeiro grande sequestro político de uma guerrilha latino-americana. Sob o comando militar de Virgílio Gomes da Silva, o Jonas, a ação dirigida politicamente pelo comandante Toledo e o jovem Franklin Martins captura o embaixador norte-americano, Charles Burke Elbrick, no dia 4 de setembro de 1969. A ditadura em crise e surpreendida com a ousada ação, cede às reivindicações da ALN e MR-8 divulgando o manifesto ao povo brasileiro e libertando os 15 presos políticos exigidos, entre eles Onofre Pinto e o histórico dirigente comunista Gregório Bezerra, que seguem para o México.       

Em paralelo, Marighella que não sabia da ação devido as regras de compartimentação da ALN, anunciava e organizava o que seria a segunda fase da guerra revolucionária, com o início da luta armada no campo. Concretamente, a estrutura que vinha sendo preparada para o início da guerrilha rural consistia em colunas guerrilheiras móveis com uma média de 50 combatentes cada e que subiriam do Mato Grosso, liberando cidades em Goiás, no sul do Pará e na região do Araguaia, no Maranhão. A Ação Libertadora Nacional como formação orgânica temporária deveria se dissolver com as demais organizações guerrilheiras em um exercício de libertação baseado na aliança operária-camponesa, expandindo a guerra revolucionária para a região da Chapada Diamantina na Bahia, o sertão de Minas Gerais, a região indígena de Dourados, hoje no Mato Grosso do Sul, o Vale do Ribeira e a região oeste de São Paulo, além do norte do Paraná. Com a continuidade combinada das ações de guerrilha urbana nas cidades do litoral e no triângulo central do país, onde estava concentrado o aparato burocrático-miliar, a derrota do regime deveria ser inevitável e o povo em armas assumiria o poder, formando um governo popular-revolucionário, sob a direção socialista da vanguarda armada.

Porém os motivos da discordância do guerrilheiro baiano com o sequestro que também o pegou de surpresa se confirmam, apesar do clima de vitória da guerrilha com a ação bem-sucedida, a ditadura desata uma repressão brutal. Virgílio Gomes da Silva, peça fundamental nos planos da ALN é assassinado em 29 de setembro, e ainda naquele ano, o próprio Marighella, declarado como “inimigo número um” pelo regime, cai em uma emboscada do DOPS paulista, após a prisão de freis dominicanos de uma base da ALN, sendo morto em 4 de novembro na alameda Casa Branca, em São Paulo. Com Marighella morto e o racha no congresso da VAR-Palmares, o novo governo linha-dura do general Garrastazu Médici e o chamado “milagre econômico” a todo vapor, 1970 será um ano de reorganização da luta armada no país.

Em 1º de janeiro, um destacamento da VAR-P, sob a liderança de James Allen da Luz, sequestra o avião da Cruzeiro do Sul que faz a rota Montevidéu-Rio e o desvia para Havana. Mário Alves, histórico dirigente comunista e secretário-geral do PCBR é capturado pela repressão e assassinado sob tortura, ainda no dia 17 daquele mês. Joaquim Câmara Ferreira, após retornar de tarefas internacionais, e contando com o apoio do jovem comandante militar Carlos Eugênio da Paz, o Clemente, de Luiz José da Cunha, o comandante Crioulo, de Ana Maria Nacinovic e Iuri de Paula Xavier trabalha na reorganização da ALN, após os planos da guerrilha rural caírem junto com Marighella, o Preto, como era carinhosamente chamado pelos combatentes.

No outro flanco, Lamarca assume o comando da nova fase da VPR. As organizações armadas, diante da brutal repressão, começam a vencer o fracionamento e avançam na construção da Frente Armada Revolucionária. A Frente coordena a ALN, a VPR, o MR-8, o PCBR e o Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT), formado a partir de uma dissidência da Ala Vermelha sob o comando de Devanir José de Carvalho e Joaquim Seixas, que adotou a sigla do antigo braço armado das Ligas Camponesas. A Frente terá também uma participação pontual da VAR-P, que mantém uma crítica às demais organizações, acusando-as de “militaristas”.

Discordando do tradicional envio de militantes para serem treinados em Cuba, pois seria necessário preparar comandantes e não apenas combatentes, a nova VPR havia iniciado a preparação de um campo de treinamento guerrilheiro no Vale do Ribeira ainda em fins de 1969. A área escolhida, coberta pela Mata Atlântica da Serra do Mar, ficava no município de Jacupiranga, na altura do km 250 da Rodovia Regis Bittencourt. Os 19 militantes se dividem entres as bases “Carlos Roberto Zanirato”, coordenada pelo sargento Darcy Rodrigues, e “Eremias Delizoicov”, sob a reponsabilidade de Yoshitane Fujimori, o campo é batizado como “Carlos Marighella” e tem o comando direto do capitão Lamarca, que simbolicamente faz as pazes com a memória do comunista baiano. O objetivo é treinar comandantes que serão deslocados depois para áreas rurais no Maranhão e, novamente, para a região de Três Passos (RS), formando as Unidades de Combate (UC) que devem iniciar as colunas guerrilheiras. Entre estudos de Marx, Lenin, Mao, Che, Debray, Ho Chi Minh, Giap e até de Trotsky, o aprofundamento em técnicas militares e de sobrevivência, o campo de treinamento Carlos Marighella segue a pleno vapor e cumprindo sua função. Iara, que chega a participar do treinamento, precisa se retirar após problemas de saúde.

No dia 27 de fevereiro, Mário Japa, que havia acabado de voltar de um curso de guerrilha na Argélia, sofre um acidente de carro, e ferido entre documentos secretos da VPR, armas e munições é socorrido por um guarda. Preso e torturado no DOPS, o DOI-CODI ávido para capturar Lamarca consegue transferir Mário para o II Exército. Ladislau Dowbor (Jamil), contata o MRT e a Resistência Democrática, a REDE, fundada pelo comandante Bacuri, após Eduardo Collen Leite se desligar da VPR. Um comando formado por 15 guerrilheiros dessas organizações captura o cônsul-geral do Japão, Nobuo Okuchi, em 11 de março no bairro de Higienópolis, em São Paulo; a repressão inunda as ruas paulistas de agentes, mas em vão, o comando unitário exige a soltura de Mário Japa, Diógenes José de Carvalho e mais três pessoas. Médici cede, os presos políticos da VPR e mais algumas crianças mantidas nos cárceres do regime, seguem para a Cidade do México. O campo de treinamento estava salvo, por enquanto.

Em abril, novas quedas atingem a direção nacional da VPR, Juarez Guimarães de Brito, o Juvenal, sociólogo de 40 anos com longa trajetória revolucionária, que havia militado nas Ligas Camponesas, passado pela POLOP, fundado o COLINA, composto a direção da VAR-P e depois da nova VPR, é pego pela repressão junto com sua companheira Maria do Carmo Brito, a Lia. Juarez, num ato de extrema coragem, comete um “suicídio revolucionário”, Lia é presa. Logo na sequência, Dowbor e outros dois militantes também caem presos. Com as torturas e documentos apreendidos, a repressão localiza a área do campo de treinamento. Com as informações extraídas, o 2º Exército monta uma gigantesca operação de guerra, a Operação Registro. Cerca de 3 mil homens de dez diferentes unidades da Marinha, Exército e Aeronáutica, além de policiais estaduais, são mobilizados contra um minúsculo pelotão de 9 guerrilheiros que permanecem para combater, enquanto outro grupo parte antes para salvar armas e equipamentos. São usados aviões e helicópteros que bombardeiam a Serra do Mar na tática de cerco retirada dos manuais norte-americanos batizada de “martelo e bigorna”, com a segunda fase da Operação Registro se prolongando até o fim de maio. O furo ao cerco tático do Vale do Ribeira e o baile comandado por Lamarca nos militares será uma das maiores humilhações passadas pelas Forças Armadas do regime.

A fuga espetacular, a áurea mitológica sobre o militar exemplar e exímio atirador fazem de Lamarca uma figura legendária, que após as mortes de Marighella e Toledo, assumia a condição de principal inimigo da ditadura, com a mídia sensacionalista quase sempre atribuindo as ações da guerrilha no país ao capitão rebelde. Mas o comandante guerrilheiro que na curta vida de clandestinidade adotou codinomes como João, César, Cláudio e Cid, após o Vale do Ribeira encontrará a VPR novamente quase destruída pelas quedas. Recorre então ao MRT e seus companheiros de Frente Armada, vivendo por um período entre diversos aparelhos com Iara, encontra abrigo seguro com a família de Joaquim Seixas e do jovem Ivan Akselrud Seixas. Após um período na geladeira e com a grande necessidade de libertar companheiros presos, um comando batizado de Juarez Guimarães de Brito composto pela VPR, REDE/ALN e MRT realiza o sequestro do embaixador da República Federal da Alemanha, Ehrenfried von Holleben, em 11 de junho, no Rio de Janeiro, em plena euforia popular da Copa do Mundo do México. A ação é comandada por Bacuri e não por Lamarca, como divulga a mídia. Após tensas negociações o governo cede, divulga o manifesto do comando guerrilheiro e 40 presos políticos do regime das diversas organizações seguem para Argélia, sob a tensão da linha-dura militar que ameaça derrubar o avião. Darcy e os outros presos no Vale do Ribeira, Pedro Lobo, Dowbor, Lia e Dulce Maia da direção da VPR, além do veterano Apolônio de Carvalho, fundador do PCBR, integram a lista de prisioneiros trocados pelo embaixador que chegam a Argel.

Em 21 de agosto, o comandante Bacuri, um dos nomes mais importantes da esquerda armada brasileira, fundador da VPR e da REDE, é preso em uma emboscada no Rio de Janeiro, já como comandante da ALN, após a fusão com a REDE. Eduardo Collen Leite, foi vítima das muitas infiltrações nas organizações guerrilheiras pela polícia política. Transferido diversas vezes, a repressão inventaria uma fuga e uma teia de mentiras sobre o guerrilheiro, mas permaneceria torturando o dirigente da ALN por longos 109 dias, até ser barbaramente morto em São Paulo em 8 de dezembro de 1970, para que não fosse incluído em uma troca de prisioneiros.

Ainda em setembro de 1970, contando com o apoio logístico do MRT, Lamarca se transfere para o Rio de Janeiro com o objetivo de reestruturar a VPR. A repressão seguia se encrudescendo com o decreto nº 66.862 que criou as polícias militares e a incorporação da OBAN pelo II Exército, dando lugar ao sistema DOI-CODI.

No outro lado das trincheiras, a Frente Armada decide por uma grandiosa ação coordenada, com um múltiplo sequestro simultâneo para libertar ao menos 200 presos políticos da ditadura, paralelamente, realiza também uma vitoriosa campanha unitária pelo voto nulo para as eleições de novembro. A chamada “Quinzena Marighella” que seria realizada na data de 1 ano da morte do fundador da ALN é frustrada com o assassinato, em 23 de outubro, de Joaquim Câmara Ferreira. O comandante Toledo era o principal articulador da Frente, com Lamarca ocupando o papel de chefe militar nos novos planos de lançar a guerrilha rural conjuntamente. Com o recuo do MR-8 e baixas nas demais organizações da Frente, a VPR decide realizar sozinha o sequestro do embaixador suíço. Giovanni Bucher é capturado em 7 de dezembro de 1970, no bairro carioca das Laranjeiras, no que seria o mais longo cativeiro de um diplomata no país. A Operação Joaquim Câmara Ferreira, comandada diretamente por Lamarca, dura cerca de 40 dias e tem uma longa negociação com as autoridades militares, onde a VPR exigia a libertação de 70 presos políticos, a divulgação do seu manifesto e a liberação das catracas nos transportes públicos do Rio de Janeiro. Em 13 de janeiro de 1971, após diversas mudanças nas listas de presos e tensões internas onde a execução do embaixador foi barrada por Lamarca, os 70 combatentes partem para o Chile de Salvador Allende.

No começo de 1971 a resistência armada segue respirando e conseguindo realizar dezenas de ações, porém, cada vez mais reduzidas às expropriações para fazer numerário e garantir a custosa sobrevivência na clandestinidade. A exceção é o trabalho de campo iniciado pelo PCdoB na região do Bico do Papagaio, fronteira entre o Cerrado e a selva amazônica, com as Forças Guerrilheiras do Araguaia. A avaliação geral era de que o expediente dos sequestros pelas organizações armadas estava esgotado. Lamarca era cassado pelo regime de todas as formas e existe uma pressão para que saia do país, verbalizada até mesmo pelo próprio Fidel Castro. O capitão se nega a sair e afirma, junto com a Iara, a necessidade de ficar para lutar. As divergências com a VPR se aprofundam e o casal enxerga no MR-8 uma alternativa para retomar a preparação de guerrilha rural. Com a saída de Lamarca, a organização que já vivia uma espiral de desintegração, chegando a discutir uma fusão com a ALN que não progride, entra em seus capítulos finais e sofrerá seu último golpe com o retorno do famigerado Cabo Anselmo, o agente Kimble, que na linguagem das organizações era um “cachorro” do facínora Sérgio Fleury e havia passado para o lado do inimigo após sua segunda prisão em 1971.

A entrada de Lamarca para o MR-8 envolveu alguma polêmica na esquerda revolucionária e a saída do capitão da VPR foi marcada por suas divergências com outro comandante, o ex-sargento da Marinha, José Raimundo da Costa, o Moisés. A dirigente Inês Etienne Romeu também deixa a organização e o cabo Anselmo assume uma condição de dirigente na VPR, após armar a prisão e morte de Moisés. Em março de 1971, Lamarca havia formalizado o processo de mudança para a nova sigla. O MR-8 é uma organização com um perfil mais pequeno-burguês desde sua origem na DI-GB e possui um discurso mais refinado sobre a revolução socialista, propõe, também, combinar a organização político-militar com o trabalho de massas e tem um novo planejamento para começar a guerrilha rural.

Após o assassinado do dirigente Stuart Angel, em 14 de junho, e outras quedas que afetam a direção do MR-8, Lamarca e Iara se transferem para a Bahia. Iara passa por Feira de Santana, mas segue para a estrutura do Oito em Salvador. Na Bahia, o capitão encontra seu velho camarada de VPR, Zequinha Barreto, que depois de ter se mantido na VAR-Palmares após o “Racha dos Sete” também se transferiu para o MR-8. Apesar de ter planos para uma área estratégica entre a Bahia e Goiás, concretamente, a organização, além da pequena estrutura na capital, iniciou um trabalho na região de Feira de Santana e recôncavo baiano que é chamada de “Marajó” com vistas a desenvolver uma guerrilha irregular e na área no sertão chamada de “Roraima”, localizada na região da Serra da Mangabeira e parte do Vale do São Francisco, escolhida para início da guerrilha rural principalmente por conta da relação de Zequinha com sua cidade de origem, Brotas de Macaúbas, mas também pela localização mais distante dos aparatos da repressão.

O MR-8 possui então um caminhão que realiza fretes e facilita o traslado e a comunicação entre a Guanabara e a Bahia, mas a precária estrutura da organização não demorará em cair. Após o trágico episódio do surto psicótico e entrega voluntária à repressão da militante Solange Gomes, o cerco se fecha. Ocorrem mais prisões na organização e Iara é assassinada em 20 de agosto no Prédio Santa Terezinha, no bairro da Pituba, em Salvador. Com a apreensão do conjunto de cartas de Lamarca para Iara com militantes do MR-8 no Rio de Janeiro, a Operação Pajussara consegue localizar Lamarca, Zequinha e o núcleo do Oito no sertão baiano, dando início a caçada que terminará tragicamente para a resistência armada no dia 17 de setembro de 1971. Lamarca cairá usando como último codinome “Cirilo”, ao lado do seu companheiro “Jessé”.                 

O fim da saga revolucionária do capitão da guerrilha é um duro golpe na resistência contra a ditadura militar fascista. Os massacres contra as organizações guerrilheira seguem. Em 29 de março de 1972, na Guanabara, a Chacina de Quintino atinge a VAR-Palmares; em 14 de junho de 1972, a coordenação paulista da ALN é vítima do Massacre da Mooca, em São Paulo; em janeiro de 1973, a VPR recebe seu golpe final com o Massacre da Granja São Bento, tramado pelo cabo Anselmo, em Pernambuco. As Forças Guerrilheira do Araguaia após enfrentarem heroicamente três grandes operações caem massacradas, e seu comandante, Osvaldo Orlando da Costa, é assassinado em 4 de fevereiro de 1974. O último núcleo da ALN também vem abaixo com prisões e assassinatos. O ex-sargento do Exército brasileiro, Onofre Pinto, a quem Lamarca jurou lealdade, é morto pela Operação Juriti em uma emboscada tentando retornar ao país pelo Paraná com José Lavecchia, os irmãos Daniel e Joel José de Carvalho e outros militantes, em 13 de julho de 1974. A luta armada contra o regime chega ao seu fim.  

Este livro, que reúne parte importante das cartas, comunicados, entrevistas e documentos inéditos escritos por Carlos Lamarca e as organizações pelas quais passou, além de homenagens de outras agrupações revolucionárias, é uma humilde homenagem à memória do nosso capitão. Um esforço para registar, principalmente por suas próprias palavras, a trajetória histórica de um dos mais importantes guerrilheiros da América Latina. Agradecemos especialmente ao companheiro Ivan Seixas, com quem planejamos essa publicação, e ao “mano” Darcy, veterano da dignidade rebelde, duas figuras históricas da luta revolucionária no Brasil que conviveram com Lamarca e com as quais tivemos o prazer de contar com o apoio e a colaboração nesta edição.

LAMARCA VIVE E VENCERÁ! 

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