English Portuguese Spanish

Carmen Villalba: “Um revolucionário comunista deve acreditar no povo pobre”

Entrevista realizada pelo jornalista Carlos Aznárez e publicada pelo Resumen Latinoamericano em 15 de novembro de 2020. Traduzida pelo Comitê pela Liberdade de Carmen Villalba – Brasil.

Esta é a segunda vez que entrevisto Carmen Villalba, prisioneira política comunista do Exército do Povo Paraguaio (EPP) que está encarcerada há 17 anos. Desta vez cheguei até ela logo depois de escutar um áudio profundamente doloroso, após o regime paraguaio assassinar suas duas sobrinhas, as meninas argentinas Maria Carmen e Lilian Mariana, de 11 anos, que foram torturadas e fuziladas pelo exército, treinado por forças repressoras colombianas.

Confesso que minha intenção era descobrir também o que ela pensa, e para além da verborragia e das mentiras da mídia hegemônica, saber as razões que a levaram a militar pela causa comunista, assumindo as consequências de tal decisão em um mundo dominado e aviltado pelo capitalismo. De um poço escuro que destrói qualquer ser humano, a prisão, Carmen Villalba não reclama de sua situação e assinala que ela é semelhante ao “sofrimento e as dificuldades da vida cotidiana do trabalhador, do camponês ou do indígena, que sofre em uma prisão ao céu aberto”. Apesar das dificuldades, ela continua otimista de que um dia, os povos cantarão a vitória.  

Carlos Aznárez: Gostaria que nos contasse em que momento da sua vida tomou consciência e por que iniciou sua militância?

Carmen Villalba: Quando tinha 13 anos, comecei a me perguntar por que faltava comida em minha casa e nas casas dos meus amigos do bairro. Apesar do trabalho árduo da minha mãe, que fez tudo, ainda não havia comida suficiente. Desde crianças fomos obrigados a sair para trabalhar, o trabalho e os esforços de minha mãe não eram suficientes. Meu irmão Osvaldo tornou-se carpinteiro desde os 7 anos de idade. A negação de direitos, a pobreza, são elementos que induzem um espírito rebelde a se perguntar, a buscar respostas, conduzem a uma consciência crítica, embora isso não seja o único fator determinante para dar um salto para a prática.

Como disse José Saramago em A Caverna: “uma pessoa não é uma coisa que se larga num lugar e fica lá, uma pessoa se move, pensa, pergunta, questiona, duvida, investiga, quer saber e se é verdade que, forçada pelo hábito da conformação, acaba, mais tarde ou mais cedo, subjugada, mas não acredita que a sujeição, em todos os casos, é para sempre”. Não somos apenas sujeitos que executamos, mas também sujeitos que pensamos. Cresci em um bairro muito pobre de Concepción, às margens do rio Paraguai, entre pescadores e carpinteiros. A combinação do ambiente político crítico e de pobreza me levou a posições revolucionárias, e com o tempo isso amadureceu e se tornou uma forma de pensar e viver.

No âmbito do tema político revolucionário, o elemento que norteou e orientou meus primeiros passos foi exercido pelo meu irmão mais velho, que era politicamente crítico para um ambiente interiorano, e foi também influenciado por alguns religiosos franceses, da Fraternidade dos Pequenos Irmãos de Jesus. Professores da Teologia da Libertação, eles encarnaram sua pregação com coerência, vivendo sua fé ao lado dos trabalhadores ribeirinhos como fabricantes de tijolos e ladrilhos. Eles viviam com seus salários, longe do ambiente abastado e cínico da Conferência Episcopal Paraguaia e da hierarquia católica, cujos votos de pobreza carregam apenas em suas bocas.

Nunca esqueço aquela bela comunidade de religiosos, eles moravam em uma pequena casa no bairro operário de Concepción, não tinham móveis, usavam poltronas rústicas para as visitas e sentavam-se em almofadas no chão para dar as aulas de formação e reflexão política, que eu frequentava com pontualidade religiosa. Com eles tive meus primeiros contatos com a ciência proletária, o marxismo-leninismo. Aqueles encontros memoráveis de adolescente marcaram para sempre minha vida e meu pensamento político. Tenho muito a agradecer a essa atmosfera de solidariedade, de ideias críticas e à minha mãe que me deixou crescer com o pensamento livre e crítico, mesmo que ela não concordasse comigo.

A IDEOLOGIA

Carlos Aznárez: No âmbito da militância em que está envolvida, além da identificação com o marxismo-leninismo, se reivindica Gaspar Rodriguez de Francia. Qual é a razão para esta definição?

Carmen Villalba: Em minha cidade natal, Concepción, dei meus primeiros passos de militância na luta estudantil, em minha escola, na criação do centro de estudantes. Nestes espaços entrei em contato com o que mais tarde se tornaria minha primeira experiência política em um partido de esquerda. Meu caráter veemente e meu entusiasmo por ingressar em uma organização revolucionária me fez abandonar a escola assim que terminei meus exames do quinto ano.

Em 1991, embarquei em uma viagem desconhecida, migrando para a capital, onde, em uma semana após minha chegada, consegui um trabalho e me instalei em um lugar, na segunda semana ingressei para a corrente Pátria Livre. Após um ano de militância política em dois departamentos do interior, o partido me integrou na célula clandestina que vinha preparando. Vários camaradas carregamos sobre nossos ombros, com convicção e responsabilidade, a orientação do partido. Sabíamos que isso implicava riscos, mas isso não desencorajava nossa disposição em lutar. Enquanto se trabalhava na formação de estruturas clandestinas e na solução do problema financeiro, ocorreu o sequestro de María Edith de Debernardi, nora do ex-homem forte e ministro das finanças de Stroessner. Daí minha prisão e minha sentença de 18 anos, que cumpro integralmente no próximo ano.

A luta passou a ser a razão e o sentido de nossas vidas, renunciamos a nossas famílias e nosso passado, as condições da luta futura exigiam entrega, alta disciplina e compartimentação. Fomos todos jovens que abraçamos a luta revolucionária. Isto, relato aqui como uma síntese de uma parte da história da luta de classes. Em 2001, a feroz contraofensiva da burguesia e do Estado encontrou uma liderança reformista, esmagada pelos acontecimentos, não disposta a sustentar um projeto político revolucionário que articulou e organizou, mas do qual acabou desistindo. Depois veio o colapso, a rendição e a liquidação do Partido.

A liderança superior do Pátria Livre acabou traindo seus companheiros presos, centenas de quadros e a luta revolucionária no Paraguai. É necessário fazer as críticas e as autocríticas, todos nós temos limitações, ninguém é infalível, é até mesmo admissível que aqueles que não estão dispostos a lutar se retirem, mas é necessário não reivindicar a condição de revolucionário, e acima de tudo, parar de ataca seus antigos companheiros que essa mesma liderança formou para logo depois abandar. Há muitas histórias sobre as experiências de organizações que assumiram a luta revolucionária como método de luta, onde há registros da existência de traidores nos quadros médios e inferiores, mas no Paraguai foram os escalões superiores da liderança que traíram e liquidaram o Partido.

O Partido Pátria Livre era uma organização política (1990-2004), definida como marxista-leninista, e na época se propôs a construir uma organização política revolucionária de quadros. O programa político do Pátria Livre não se baseava na colaboração de classes, mas na luta de classes.

O objetivo estratégico do Partido era a tomada do poder, para resolver as contradições de classe pela via revolucionária, para isso, se propôs a tarefa de aguçar as contradições entre a oligarquia e a classe trabalhadora. Desmascarar a plutocracia continuísta da ditadura que vinha mudando suas máscaras, após 35 anos de uma ditadura responsável por centenas de desaparecidos, assassinatos de opositores, torturados, com todos impunes e transformados em democratas, dentro do arranjo da burguesia de 2 e 3 de fevereiro, para seguir por outros 35 anos.

O Pátria Livre se propôs a lutar contra esta violenta máquina político- ideológica. Além da estrutura político-partidária e do trabalho de massas, organizou estruturas clandestinas e compartimentadas, das quais eu era membro. Iniciamos a construção de órgãos clandestinos para combinar todas as formas políticas de luta, fiéis a um dos princípios marxistas: “[…] o marxismo distingue-se de todas as formas primitivas de socialismo pelo fato de ele não amarrar o movimento a qualquer forma determinada e única de luta. Ele reconhece as mais diferentes formas de luta, e além disso não as ‘inventa’, mas apenas generaliza, organiza, dá consciência àquelas formas de luta das classes revolucionárias que surgem por si no curso do movimento.” (Lênin, em A guerra de guerrilhas

Levantar a bandeira da luta revolucionária no Paraguai e não a basear na história da Primeira República radical da América (1811-1870), cujo ideólogo político e principal promotor foi o Dr. José Gaspar R. de Francia, seria um desvio político. A história do Paraguai foi inigualável nesta parte do Rio de Prata. Segundo Óscar Creydt: “O Paraguai foi o único país da América Latina que conseguiu desenvolver a revolução separatista ininterruptamente até conseguir uma mudança de estrutura por meio de um desenvolvimento econômico independente”, sendo exemplo digno de ser seguido sob novas e superiores condições históricas.

Carlos Aznárez: Você pensa nos mesmos termos que o Marechal Francisco Solano López?

Carmen Villalba: Sou lopizta, por seu exemplo heroico, mas não posso dizer que penso o mesmo que López, especialmente porque os contextos históricos são diferentes e López foi um democrata liberal, eu sou uma comunista. Mas não há melhor exemplo na historiografia paraguaia do que os heróis da pátria, como o Dr. José G. de Francia e o Marechal Francisco Solano López. Desde a tripla infâmia, o Marechal López está inserido no coração do povo, por seu heroísmo e dedicação pela pátria, um digno representante da crescente burguesia revolucionária. López deu sua vida em defesa da pátria, muito longe da realidade de hoje, onde os políticos de turno entregam a pátria em negociatas de cúpulas.

Carlos Aznárez: As ideias de Che e o guevarismo também entram em suas propostas ideológicas?

Carmen Villalba: Não há dúvidas sobre isso. Che, um intelectual e combatente revolucionário marxista-leninista latino-americano, sua heresia política e a força de suas ideias e prática revolucionárias. Um revolucionário profundamente humano e consequente, está muito presente, e não como um ídolo usado em camisetas, broches ou boinas, mas, – como Fidel costumava dizer – na busca para construir o modelo de homens novos e mulheres novas.

Che nos lembra que revolução não é uma palavra oca e altissonante que se carrega apenas na boca, mas uma nova organização social, econômica e cultural em ruptura com o capitalismo e seu modelo alienante e desumanizador construído sobre a exploração do homem pelo homem. Um estágio social mais elevado do futuro pelo qual valem a pena todos os esforços e a luta. Em uma de suas passagens mais potentes: “o socialismo econômico sem a moral comunista não me interessa”; ele nos convida a pensar sobre ser comunista revolucionário.

Carlos Aznárez: O que você pensa sobre as possibilidades de unir as lutas dos povos da Pátria Grande no futuro?

Carmen Villalba: A unidade e organização do proletariado internacional além as fronteiras físicas é o único caminho viável para resolver as contradições intransponíveis entre capital e trabalho, entre as burguesias e o proletariado. A classe trabalhadora não tem nada em termos de recursos econômicos, as leis são criadas para perpetuar sua opressão, não possui meios poderosos e hegemônicos de comunicação, que diariamente poluem a mente e a consciência de nossos povos, insuflam e martelam resignação em suas mentes, anunciando o caráter eterno da democracia do capital. Mas, em contrapartida a tudo isso, a classe operária e camponesa tem a si mesma. Organizada e com consciência da classe, pode tornar-se um poderoso tsunami capaz de uma ruptura com o poder hegemônico capitalista esgotado e decadente.

Daí a urgente necessidade de unidade do campo popular, das forças progressistas e revolucionárias tanto no Paraguai como com os povos de nossa América, pois é o que nos concerne. A brutalidade sem razão do capitalismo imperialista e das burguesias sem pátria que não poupam esforços ou recursos, sejam eles econômicos ou tecnológicos, para eliminar qualquer iniciativa de luta do povo pobre que busca melhores formas de vida e desenvolvimento, onde o capital não é o eixo predominante, quando métodos persuasivos como a religião deixam de funcionar, é atacada com sangue e fogo.

Comunicado do Exército do Povo Paraguaio (EPP) de janeiro de 2016.

Carlos Aznárez: Uma pergunta pessoal, mas relacionada ao seu confinamento involuntário. Você consegue ler na prisão? Se você tivesse que citar alguns, quais são os textos que tiveram maior impacto sobre você ao longo dos anos?

Carmen Villalba: Posso ler e tento ler o máximo de tempo possível. Na verdade, são vários os livros, a leitura me traz sobriedade e é uma inestimável contribuição, é como entrar em diálogo e ouvir grandes pensadores. Gosto de ler os mestres do proletariado: Marx, Engels e Lênin, sobretudo porque eles constituem a arma espiritual da classe trabalhadora, sistematizaram a experiência de luta do proletariado mundial, por isso constituem o pensamento mais avançado que a mente humana poderia moldar, na área filosófica, econômica e social. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, os Manuscritos Econômicos-Filosóficos de 1844, O Estado e a Revolução de Lênin.

As obras do filósofo venezuelano Luis José Silva Michelena, conhecido como Ludovico Silva, estudioso de Marx, sua magnífica obra: La plusvalía ideológica, com uma beleza léxica típica de um escritor habilidoso. E estudar e compreender o método dialético, um método poderoso e científico que nos ajuda a pensar no estado natural das coisas, em suas tensões e contradições, em suas conexões e transições. Ele me ensina a entender que as crises cíclicas e graves que surgem não devem ser consideradas como catástrofes, mas como intrínsecas à luta de classes. E estas são enquadradas em tensões permanentes, às vezes escondidas, encobertas, às vezes francas e abertas. Estas tensões também são produzidas no pensamento, na natureza e na sociedade.

PARAGUAI: DA DITADURA DE STROESSNER A ATUALIDADE

Carlos Aznárez: Desde que começou a se interessar por política, você já sentiu que havia um governo que estava comprometido com o povo, que praticava uma democracia inclusiva?

Carmen Villalba:  É difícil conceber uma “democracia” inclusiva nestes 31 anos de pós-ditadura, a mídia hegemônica chama de transição democrática, uma transição destinada a acomodar as cúpulas e clãs de uma oligarquia corrupta. A burguesia paraguaia e o Partido Colorado não desenvolveram sequer uma pequena economia capitalista, o que poderia ter trazido oportunidades de empregos para os pobres. Mas o Paraguai tem uma economia informal e muito desigual, as pessoas procuram trabalhar em tudo o que possam encontrar para sobreviver, isto significa trabalhos precários e sem um salário mínimo básico, sem seguro do IPS (Instituto de Previsión Social) ou aposentadoria.

A incerteza, a insegurança social e no emprego na vida dos trabalhadores é uma constante nestes 31 anos, onde a retórica hábil e cínica da democracia do capital sobre a suposta implementação de um Estado de direitos, aqui não funciona nem mesmo como uma farsa. O Paraguai foi deixado para trás, como um país empobrecido, liderado por uma classe dominante corrupta, sanguinária, fascista e entreguista. Convertido em um país produtor de matérias-primas que nem mesmo conseguiram industrializar aproveitando a energia das barragens hidrelétricas existentes.

Sua economia é baseada na exploração agropecuária, na produção agrícola extrativista, na especulação fundiária, com uma distribuição imensamente desigual, o monopólio das grandes propriedades sobre as melhores terras se prolifera desalojando os camponeses de suas terras, que são forçados a migrar para a cidade, formando os cinturões de pobreza da capital e áreas circunvizinhas. Grandes latifúndios expoliam a terra e poluem os cursos de água, a agricultura capitalista com a implementação de fumigação por aviões, envenenam comunidades camponesas destruindo suas culturas nativas para consumo, ou são expulsas de suas terras, sufocadas pelo avanço da agricultura capitalista ou ameaçadas pelos exércitos de bandidos privados instalados nas grandes propriedades.

No Paraguai, a agricultura capitalista e a pequena agricultura familiar convergem e disputam. Os grandes latifúndios agroexportadores de commodities que nem sequer pagam impostos. Os políticos burgueses e a grande burguesia aplicam o seguinte princípio: riqueza para nós, repressão e miséria para os trabalhadores e camponeses pobres. Em 2013 foi aprovada a Lei 5061/13 (que dizem que foi modificada em 2020, mas não se sabe de sua real modificação e implementação), aprovada para as operações de exportação de produtos agrícolas em seu estado natural e seus derivados e nela se estipula que a restituição do crédito fiscal será de 50% do IVA (Imposto sobre o Valor Agregado).

Carlos Aznárez: O stronismo morreu com o ditador [Alfredo Stroessner] ou você acha que tem houve um continuísmo?

Carmen Villalba:  O stronismo foi uma das mais longas ditaduras da nossa América, uma plutocracia militar mantida pelo Partido Colorado e as forças armadas, cujos crimes permanecem impunes até os dias de hoje. Daí a definição de continuísmo, pois não houve uma ruptura na prática com a corrupção sistêmica. Não houve desmantelamento de sua estrutura repressiva e criminosa, nem mesmo os sobrenomes mudaram, e a cultura autoritária e fascista dos personagens dantescos, profissionais no ramo de transações, manipulação e regalias que gostam de dizer que o Partido Colorado é “grande” por causa de sua capacidade de adaptação aos novos tempos, ainda está muito em vigor. Antes de 1989 havia os pais e avôs dos atuais senadores, deputados, funcionários do judiciário, juízes e promotores de justiça. Fala-se de liberdade de expressão, contanto que ela não afete o status quo.

Carlos Aznárez: O governo de Fernando Lugo foi uma exceção ou mais do mesmo?

Carmen Villalba: Lembro-me daqueles dias da vitória eleitoral de Lugo, em 20 de abril de 2008; se podia sentir e ouvir o entusiasmo do povo, o entusiasmo do povo pobre, do campesinato que acreditava que finalmente conseguiria sua necessária reforma agrária. O setor intelectual progressista, ligado as ONGs e disseminadores de opinião, superestimou muito. Politicamente, eles o apresentaram como uma ruptura entre o poder e o Partido Colorado após meio século. A realidade logo desmantelou a farsa. O fenômeno de Lugo e da Frente Guasú não pode sequer ser apresentado com uma linha democrática progressista. Em seus quatro anos de mandato, ele nada mais fez do que reproduzir as políticas econômicas neoliberais, com uma margem de diferença muito pequena visto que a maioria de seus aliados eleitorais não eram das seções coloradas, mas as lideranças sociais burocratizadas, que abandonaram suas organizações e suas bases para formar parte do serviço público corrupto. Eles desmontaram e destruíram 25 anos de organização e luta camponesa e social.

Em 2010, Lugo apresentou a lei antiterrorista ao Congresso e rapidamente conseguiu implementá-la. O luguismo e a Frente Guasú não se assemelham nem mesmo a linha progressista, mas a uma variante do oportunismo pequeno-burguês que apoia medidas repressivas e fascistas no parlamento.

Carlos Aznárez: Como analisa o momento atual com o governo Abdo e o nível das lutas sociais? Você sente que há um despertar para a rebelião popular?

Carmen Villalba: Acredito que o pobre povo paraguaio, de acordo com o que está acontecendo em nossa América, está começando a se livrar do fardo da letargia e da inércia. A crise capitalista mundial, sua exaustão e decadência, também está sendo sentida pelas massas empobrecidas e relegadas no Paraguai. E o governo pretende aplacar com repressão e seu programa de esmolas Pytyvõ (em Guarani, ajuda estatal como forma de subsidiar a pobreza) de 500 mil guaranis (71 dólares) neste período de crise capitalista pandêmica, o que não resolve a fome de centenas de famílias empobrecidas. O governo joga algumas moedas para uma classe trabalhadora confinada pela Covid, onde (segundo números oficiais) cerca de 300 mil trabalhadores ficaram sem emprego e isto deve ser adicionado a taxa atual de pobreza de 27%. Por outro lado, ao mesmo tempo, em outro polo, os bilionários aumentaram sua riqueza. O placebo do Pytyvõ não cura o câncer, apenas engana momentaneamente.

É natural que o descontentamento esteja crescendo e se transformando em organização e luta do povo, onde convergem um conjunto de condições objetivas, impulsionadas pela crise econômica e política do regime social vigente. A crise de representatividade dos partidos burgueses entrincheirados no poder político e o esgotamento da democracia burguesa, que só reproduz miséria e opressão para as grandes maiorias, incita a consciência crítica e a rebelião dos camponeses e trabalhadores pobres.

Carlos Aznárez: Qual protagonismo tem as mulheres na luta no Paraguai?

Carmen Villalba: O protagonismo das mulheres nas frentes de resistência e luta no Paraguai nunca esteve ausente. Nas ocupações rurais que lutam contra os despejos, nos bloqueios de estradas por melhores preços para os produtos agrícolas, nas mobilizações por melhores condições de trabalho ou contra as demissões, sempre teve o rosto de uma mulher. Além disso, nas frentes de luta mais combativas, nunca houve a falta de mulheres camponesas e operárias. Talvez, a luta das mulheres proletárias e camponesas não tenha sido sistematizada, por isso pareceu ter pouca importância e protagonismo político. Mas isto é apenas uma verdade pela metade.

A PRISÃO

Carlos Aznárez: Para você, a prisão é outro lugar de luta? Conte-nos sobre as condições da prisão que você e seus camaradas vêm sofrendo há anos.

Carmen Villalba: Sem dúvida alguma, para um revolucionário sua existência está inserida na própria luta, onde quer que esteja deve lutar, não há espaço para acomodação. É muito difícil para mim assumir uma posição indiferente diante do sofrimento e da luta da minha classe, independentemente da estigmatização e da criminalização que isso implica. A prisão é também uma trincheira de resistência e luta para todo revolucionário comunista. Rompemos com a velha crença de que os presos políticos deveriam ser separados dos presos sociais, lutamos contra essa separação, mesmo que o regime prisional por muito tempo nos impusesse o isolamento e nos proibisse de estabelecer vínculos com outras mulheres presas. Como não puderam nos sancionar, o fizeram com as outras mulheres que procuravam compartilhar conosco. A prisão está cheia de mulheres de origem humilde que deixaram crianças fora e dentro da prisão, além do cínico discurso de gênero do governo.

Temos um grande arquivo onde apresentamos reclamações contra todos os tipos de abusos, torturas, extorsões por funcionários, confinamento em outras prisões como punição disciplinar, e vamos publicar um livro. No livro registramos estes 17 anos de prisão, com todos os fatos que envolvem maus tratos, torturas, isolamento em masmorras onde várias mulheres morreram, algumas queimadas, outras cometeram suicídio ou foram mortas, confinamento de mulheres em prisões mistas, como forma de punição. Este discurso contra a violência de gênero do Ministério de Assuntos da Mulher é um discurso cínico, suas prisões não estão isentas destas práticas que nunca são sequer denunciadas. Nos momentos em que o fizemos, sempre tivemos consequências repressivas, sanções e punições ou algum processo judicial forjado. A ausência de solidariedade das organizações feministas paraguaias é evidente, a indiferença ecoa por dentro das prisões. As mulheres pobres privadas de liberdade não têm qualquer importância nas políticas feministas.

O MASSACRE DAS MENINAS

Carlos Aznárez: Recentemente o exército assassinou duas meninas argentinas, Maria Carmen e Lilian Mariana, suas sobrinhas, e escutamos seu testemunho com toda a dor expressa por este crime. O que você acha que deve ser feito em nível nacional e internacional para tentar evitar que esta atrocidade caia no poço da impunidade?

Carmen Villalba: Os povos tem a organização e a mobilização como única forma de buscar justiça e não esquecer o martírio dos nossos. Não há outra maneira, as estruturas do Estado burguês paraguaio são criadas para garantir a impunidade de seus capangas, eles o fizeram nos tempos da ditadura, eles continuam a reproduzi-lo hoje. Tenho grande confiança na força e mobilização militante do campo popular. Muitas organizações sociais e políticas na Argentina e em outros países estão assumindo esta bandeira que carrega o nome de Eran Niñas.

Carlos Aznárez: Esta forma de ação das forças repressivas é algo comum no Paraguai?

Carmen Villalba: Para ilustrar as ações repressivas das forças militares e policiais, é necessário recorrer à tese leninista sobre a caracterização do Estado e sua burocracia repressiva. O Estado, como violência organizada a serviço da classe dominante, combate as consequências de uma causa gerada por sua política de fome. Então, quando a pobreza e a fome levantam o povo, a repressão chega para trazer “ordem”, ou seja, para subjugar pela violência. Lênin, em seu “O Estado e a Revolução”, descreve a verdadeira essência das forças repressivas, aqueles que apontam suas armas para o povo pobre para mantê-los apartados, ele diz que: “O exército permanente e a polícia são os instrumentos fundamentais da força do poder do Estado”. Os dados aqui apresentados descrevem o papel real dessas forças estatais paraguaias.

Uma publicação recente dos pesquisadores Lis García e Abel Irala, da Base Investigações Sociais, refere-se a 114 assassinatos de camponeses e líderes sem-terra: “Os assassinatos fazem parte das estratégias de criminalização da luta social, neste caso a luta camponesa, que é acompanhada de despejos violentos, roubos, queima de pertences, ataques, ameaças de morte, assédio, agressões sexuais, etc. O relatório de Chocoke, da Codehupy (Coordinadora de Derechos Humanos del Paraguay), mantém um registro de 1989 a 2020, onde se refere que 124 camponeses foram mortos pelas forças repressivas do Estado em conluio com grupos paramilitares e milícias privadas instaladas nas fazendas. O slogan de ontem era “Paz e progresso com Stroessner, por um Paraguai próspero e feliz, para a paz permanente, justiça social e liberdade do glorioso povo paraguaio. Contra a pregação política subversiva que busca a divisão da família paraguaia”.

Carlos Aznárez: A que tipo de doutrina está ligado o fato de que, diante do assassinato de duas menores, um presidente posa com os assassinos e se vangloria de “uma vitória importante” contra os guerrilheiros?

Carmen Villalba: O que aconteceu com Lilian Mariana e Maria Carmen, duas meninas brutalmente torturadas e executadas, não foi por acaso, faz parte do projeto de “segurança democrática” orquestrado pelo paramilitar colombiano Álvaro Uribe, reproduzido no Paraguai nos últimos dez anos, assim como os “falsos positivos”. Os principais instrutores e assessores no Paraguai há uma década são colombianos. Mas vejamos as reflexões do psicólogo social colombiano Edgar Barrero Cuellar (que sentiu na própria carne a perseguição do Estado paramilitar colombiano) em seu livro “La estética de lo atroz”, onde ele reflete sobre a psicologia da violência política na Colômbia, descrevendo a encenação de rituais de guerra psicológica:  “são a base moral do cinismo e da impunidade, o torturador sabe que é apoiado por instituições sociais que endossam e avalizam as humilhações, intimidações e torturas que ele executa sobre aqueles que são considerados ‘inimigos da pátria’. Mas esta prática também não é nova no Paraguai; foi amplamente utilizada contra os opositores pela ditadura, na época os autores eram os pais e avós dos atuais executores”.

Barrero Cuellar mergulha no romance histórico, onde encontra uma analogia com o que vem acontecendo na Colômbia nesses 50 anos e que no Paraguai é reproduzido de forma entrelaçada com a experiência ditatorial, na gravura que ilustra o texto “Ursúa” de William Ospina, intitulada “Pizarro suelta a los perros”, de 1602. Esta gravura mostra um grupo de indígenas sendo despedaçados por vários cães, treinados para esse fim, sob o olhar complacente dos soldados espanhóis; um exemplo que pode ser comparado às recentes celebrações promovidas pelo governo como “parte da vitória”, exibindo como parte de um espetáculo público destinado a promover expressões de júbilo coletivo os cadáveres mutilados dos “líderes guerrilheiros”.

Com Lilian e Maria Carmen foi uma cópia fiel. Mas nesse caso eles foram além do espetáculo dantesco narrado por Ospina, Lilian Mariana e Maria Carmen eram meninas de 11 anos cujas idades foram escondidas, não morreram em um confronto militar como o governo apresentou, e seus corpos não caíram sob os dentes de cães treinados para devorar suas presas, mas os cães que mordiam eram alguns homo sapiens com uniforme militar e seus dentes eram facas e marretas. As duas meninas foram presas, torturadas e executadas. Os dentes e as unhas de Maria Carmen foram arrancados, seu lóbulo frontal foi dividido, ela tem facadas desde a orelha até o canto da boca, dois cortes paralelos profundos de cerca de 10 centímetros em seu pescoço e cortes sob seu nariz que foram quase arrancados. Ambas as nádegas têm traços de cortes múltiplos e arranhões com um objeto afiado ou faca e vestígios de queimaduras. Lilian também tinha dentes e três unhas arrancadas de sua mãozinha. Em seus dedos e rosto ela tem fraturas e queimaduras. Tudo isso é independente dos vestígios de tiros. As marcas em seus corpos são provas claras de que ambas foram brutalmente torturadas antes de serem executadas. Todos esses relatos estão registrados em fotos e filmagens em posse da família.

O historiador argentino Mariano Damián Montero, nos primeiros dias após o assassinato das meninas, publicou um artigo intitulado “Infanticídio secular, ontem crianças heroicas, hoje meninas guerrilheiras”, no qual ele tenta explicar a doutrina por trás do comportamento herdado biologicamente e politicamente da ditadura. Ele atribui as sequelas físicas e psicológicas da mais longa e sangrenta ditadura, cuja marca ainda permanece hoje, e prossegue dizendo que “a volta à história recente ajuda a entender como a sociedade poderia eleger como presidente um continuador biológico e ideológico da pior ditadura que o país já sofreu, a mesma pessoa que, após o assassinato das meninas, posa com oficiais militares infanticidas”.

Carlos Aznárez: Carmen, por conta de todas as adversidades que têm passado e das dores que elas implicam, você sentiu alguma vez que sua luta perdeu o sentido?

Carmen Villalba: A luta revolucionária é uma coisa grandiosa, não se pode pretender medir sua validade e razão de ser, segundo crenças subjetivas ou segundo a dor, o sofrimento e as adversidades que nós comunistas atravessamos nesta jornada. Se eu tentasse desqualificar sua validade e seu significado, seria apenas um erro pessoal, uma opinião subjetiva sem qualquer importância, seria a manifestação de uma limitação pessoal sem qualquer base científica e uma vil claudicação revolucionária.

O processo histórico ocorre independentemente que estejamos conscientes ou não dele, é tão natural e objetivo como o amanhecer de cada manhã, exceto pelo fato de requerer da intervenção humana. Considero que o sofrimento que tenho que suportar é semelhante ao sofrimento e às dificuldades da vida cotidiana do trabalhador, do camponês ou indígena, que sofrem em uma prisão a céu aberto. Não se pode falar em liberdade quando mais de dois milhões de paraguaios vivem na pobreza e na incerteza de não saber se terão comida para o dia seguinte, ou se não serão expulsos de suas terras.

Um revolucionário comunista não pode ser pessimista, ele deve acreditar no povo pobre, em seus irmãos e irmãs de classe. Ele deve confiar na possibilidade de transformações revolucionárias. Espártaco, um herói para Marx que o descreveu como um digno representante do proletariado, se houvesse deixado aviltar-se pela ferocidade do Império Romano não teria lutado.

COMPARTILHE

LEIA AS ÚLTIMAS POSTAGENS EM NOSSO BLOG